sexta-feira, 22 de março de 2024

À conversa com Teresa Martins Marques: do ensaísmo à ficção


Na minha escrita procuro a clareza alicerçada em microanálises – Close reading –, sem excluir os contextos históricos.


    Teresa Martins Marques tem um longo percurso literário e de docente, doutorada pela Universidade de Lisboa com uma tese sobre a obra, crítica e biográfica, de David Mourão Ferreira. Foi Presidente do Pen Português ainda há poucos anos, a organização mundial que zela pela liberdade intelectual e outros direitos humanos. É autora do grande romance Não Matarás: Romance de Um Crime (2022), que tem como tema central o assassínio de Aldo Moro em 1978. Publicou antes A Mulher Que Venceu Don Juan (2013), em que a violência que sofrem as mulheres no nosso país e em toda a parte constitui uma espécie de libelo mundial contra essa violência que é doméstica, mas não só. Neste momento escreve uma longa biografia de José Rodrigues Miguéis, um dos supremos escritores portugueses do século passado, e depois de Portugal e outros países da Europa acabaria por viver os seus mais de quarenta anos em Nova Iorque, sem nunca mais querer voltar permanentemente ao seu país de origem. A nossa conversa focou principalmente esta outra faceta da sua vida intelectual. Vive em Lisboa, e olha a luz branca da sua cidade pela janela ou pela sua varanda. Serena, e ainda assim intensa perante uma obra maior da nossa literatura e respetivos estudos.

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    O
seu romance
Não Matarás foi-me muito significante, quanto a política e decência humana. O que faz uma autora de Estudos Portugueses e outros a rever o assassínio de Aldo Moro?

    Em 2018 evocava-se, em Itália, o quarantennale dos crimes da Via Fani-Roma, perpetrados pelos terroristas das Brigate Rosse e seus cúmplices, em 16 de Março de 1978. Tais crimes consistiram no rapto de Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã, e o assassínio de cinco agentes da sua escolta, a que se seguiram 55 dias de sequestro de Aldo Moro, culminando com o seu assassínio, em 9 de Maio, e o seu cadáver deixado no porta-bagagem de um Renault 4 rosso, na Via Caetani, estrategicamente colocado entre as sedes da Democracia Cristã e do Partido Comunista. Ambos os partidos apoiaram o governo de Giulio Andreotti, na recusa de negociar a troca de prisioneiros para a libertação de Aldo Moro. Disseram que não se negoceia com terroristas, mas não tiveram pejo em negociar, com os mesmos terroristas, em 1981, quando sequestraram Ciro Cirillo, também ele membro da Democracia Cristã.

    Partindo do pressuposto de que literatura é um lugar onde a memória se preserva, um romance histórico seria a melhor forma de a evocar, questionar e esclarecer. Após três anos e meio de investigações veio a lume o romance intitulado Não Matarás! (Gradiva, 2022) – porventura o mais importante dos Dez Mandamentos, que neste caso não foi cumprido nem pela Democracia Cristã nem pelo Partido Comunista, direita e esquerda aliada contra um homem bom.

    O romance articula os aspectos ficcionais com os factos históricos, através de uma pseudo-brigadista “Anna”, que acompanha Aldo Moro nos lugares do sequestro. Esta personagem é uma criação ficcional, baseada numa mulher real que deixou dois cabelos ruivos, de 14 e de 18 centímetros, no casaco escuro de Aldo Moro.

    As Brigate Rosse não contaram a verdade sobre múltiplos aspectos que envolveram o crimes conforme apurou a última Comissione Parlamentare d’Inchiesta Moro (2014-2017), dirigida pelo deputado Giuseppe Fioroni. O Memoriale assinado pelos brigadistas Valerio Morucci e Adriana Faranda, em 1984, seis anos após o crime, foi trazido dos cárceres pela freira Teresilla Barrilà, para ser entregue ao Presidente da República, Francesco Cossiga, em 1990. Esse Memoriale chegou ao público doze anos depois dos factos aí narrados e já muito subvertidos, porquanto não foi escrito apenas por aqueles dois brigadistas, mas também por Remigio Cavedon, vice-director de Il Popolo, o jornal da Democracia Cristã. Tal Memoriale é hoje considerado um documento lacunar e falseado. É uma versão de conveniência que terá servido para negociar a redução das penas. Crime contra Aldo Moro é também o seu abandono por parte do Estado e de todos os que, com maquiavélicas estratégias, não permitiram a sua libertação: a loja P2 de Licio Gelli e Umberto Ortolani, o governo de Giulio Andreotti e Francesco Cossiga e certos sectores do Vaticano, entre os quais Monsenhor Paul Marcinkus, envolvido nos escândalos do IOR – Banco do Vaticano, de que era presidente, não esquecendo o omnipresente demiurgo Henry Kissinger. No fim de contas, as Brigate Rosse foram criminosos idiotas úteis!

    Conheço muito bem a tua obra literária no seu todo. Você é a maior especialista, da obra de José Rodrigues Miguéis, um dos mais distintos autores portugueses do século passado. Está prestes a publicar uma grande biografia do nosso escritor que passou boa parte sua vida em Nova Iorque, numa espécie de exílio tranquilo. Como tem sido essa investigação e escrita?

José Rodrigues Miguéis
    Tendo já dedicado abundante atenção crítica à Obra de José Rodrigues Miguéis, entendi que fazia falta uma biografia aprofundada que cobrisse a dimensão vivencial, sem descurar alguns aspectos da obra literária. Escrevo a partir da investigação das fontes primárias: os microfilmes do espólio de José Rodrigues Miguéis, arquivado na Biblioteca Nacional, e os arquivos da PIDE e uma vasta correspondência inédita, com particular relevo a que Miguéis manteve ao longo de toda a vida com David Ferreira, seu afilhado de casamento e com Jacinto Baptista, director do Diário Popular, que acolheu as publicações do escritor na última década. Através dela percebem-se os motivos que o levaram a não voltar a Portugal depois da revolução de Abril e as desconfianças que mantinha durante o PREC. Esclarece-se a verdadeira identidade da filha adoptiva e os problemas tremendos que envolveram o seu primeiro casamento com a tresloucada Pesea Cogan Portnoi, oriunda da Bessarábia, sua colega em Bruxelas, e que aos 17 anos já se tratava, em Viena, com Alfred Adler, mas que nem assim se curou…

    Nesta biografia não poderia deixar de ser contada a saga que corre nos tribunais entre a neta e a caretaker da muito idosa viúva do escritor, Camila Miguéis, por via de um testamento que esta fez aos 101 anos, no consulado de Portugal, em Nova Iorque, em exclusivo favor da caretaker, no qual declarou que não tinha descendentes, quando na realidade tinha uma filha adoptiva, uma neta e duas bisnetas!

    A biografia permitirá corrigir outras falsidades que correm nos documentos oficiais, pálida amostra da desordem que grassa nos arquivos, que inventam factos a partir de erradas traduções e deficientes transcrições. Exemplo disso é o registo nº 157, de 15 de Setembro de 1952, dos Registos Centrais de Lisboa, no qual Miguéis, ateu confesso, duas vezes casado apenas pelo Registo Civil, aí surge casado “catolicamente” por via de uma má tradução, que toma por padre o funcionário do City Hall de Nova Iorque!

    Fale-me das suas opções literárias, ensaístas e críticas

    No que respeita ao ensaísmo, José Rodrigues Miguéis e David Mourão-Ferreira são os dois escritores a que dediquei maior atenção ensaística. Sobre o primeiro escrevi a dissertação de mestrado – a primeira em Portugal sobre o autor – O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis, apresentada na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1992, e publicada em livro pela Editorial Estampa, em 1994 (3ª ed.1997). Dirigi as edições e prefaciei cada um dos treze volumes das Obras Completas, publicadas no Círculo de Leitores, entre 1994-1996.

    Clave de Sol-Chave de Sombra: Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira (Âncora Editora, 2016) foi, noutra versão, tese de doutoramento apresentada à Universidade de Lisboa. Outros autores a que dei atenção crítica e ensaística foram Cesário Verde, Gomes Leal, Raul Brandão, José Régio, Vitorino Nemésio, Eugénio Lisboa, Fernando Aires, João de Melo, Onésimo Almeida, Adelaide Freitas, Vamberto Freitas, em diversos ensaios e, particularmente, no volume Leituras Poliédricas (Universitária Editora, 2002).

    Na minha escrita procuro a clareza alicerçada em microanálises - close reading -, sem excluir os contextos históricos. Si On Parle du Silence de la Mer (1985) é um estudo da novela Le Silence de la Mer (1942) de Vercors, pseudónimo do escritor francês Jean Marcel Bruller, fundadora das Éditions de Minuit, situando-a na Segunda Guerra Mundial. A aliança entre a ficção, o ensaio e a filosofia pode ser vista no romance A Mulher que Venceu Don Juan (2013) onde uma personagem estuda O Diário do Sedutor de Kierkegaard. Neste país em que a leitura é apanágio de happy few, é meu dever evitar a linguagem críptica, alambicada, logarítmica, que afasta grande parte dos leitores.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 22 de março de 2024.

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