sexta-feira, 29 de março de 2024

À conversa com Diogo Ourique, ou como se faz ficção anti-ficção

 

As metrópoles, aos poucos, vão perdendo a piada, o encanto, a novidade – aquele canto da sereia.


    Diogo Ourique é um outro escritor muito especial para mim, para além de toda a sua criatividade enquanto em Lisboa, e agora a partir dos Açores. O seu primeiro romance Tirem-me Deste Livro é um dos atos de ficção mais originais na literatura portuguesa. Natural da freguesia Agualva, da Ilha Terceira, não pede desculpa a ninguém pelo seu regresso à terra natal. Não imaginem a admiração que tenho por ele e por a toda a sua geração. Escritor supremo, que tem múltiplas geografias como ponto de referência, desenvolve a sua carreira como se o mar entre nós todos fosse apenas, e é, uma estrada para o resto do mundo. Tirem-me Deste Livro está prestes a ser lançado nos Estados Unidos na tradução em inglês, agora com título Let Me Out of This Book, da Bruma Publications do Portuguese Beyond Borders Institute da Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, e dirigida por Diniz Borges. Merecido. Bem-vindo.

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    O teu primeiro romance, Tirem-Me Deste Livro, publicado em 2019, foi-me algo mais do que uma surpresa que me deliciou de maneira perversa. Afinal, tinha de ser um autor agualvense a rachar a cabeça de uma personagem logo nas primeiras páginas. O que se segue ainda torna essas páginas mais do que subversivas entre todos os autores açorianos.

    
    

    A ideia foi tentar entrar com um estrondo, seguindo à risca aquela regra literária de se tentar captar a atenção do leitor logo nas primeiras páginas. E, com esse prólogo, pretendi também definir o tom da obra logo à cabeça, para que ninguém fosse ao engano: trata-se de um livro pesado (naquilo que descreve), com sangue, vítimas e más acções. Mas, ao mesmo tempo, contando a história de um protagonista que se apercebe da sua condição de personagem fictícia, o próprio livro acaba por questionar a realidade de tudo o que vai acontecendo ao longo da trama, já que tudo não passa de histórias e acções imaginadas e escritas por outrem – logo, será que realmente aconteceram? É, talvez, reflicto agora, uma estratégia que inventei para poder carregar no terror e no macabro à vontade, ao mesmo tempo que seguro a mão do leitor e lhe digo: “Calma, nada disto é real. Isto não está realmente a acontecer. Por isso, tudo é válido”. Uma estratégia que acabou por me valer de muito, já que me permitiu, neste primeiro fôlego literário, experimentar à vontade, dizer tudo o que me apetecia, e não me limitar exclusivamente às quatro paredes de uma história.

    Porque a motivação também foi essa desde o início, e tem sido ao longo de tudo o que tenho escrito e do que ainda estou para escrever: ir além dessas paredes, o chamado “break the fourth wall”. Embalado por tantas outras histórias – na literatura, no cinema, nos jogos de vídeo – que descrevem pessoas que acordam da sua realidade e percebem que o mundo à volta delas não é verdadeiro, que quebram essa quarta parede, que falam com o público. Muitos de nós já nos imaginámos noutras peles, noutras vidas; questionámos a nossa própria existência. E tentamos desconstruir a realidade à nossa volta, analisando-a por partes, questionando dogmas, refutando certezas. É isso que, para mim, é mais interessante na arte: a desconstrução. Estudar e conhecer bem as regras para, a partir daí, as conseguirmos desmontar, arrumá-las para um canto, fazer troça delas, até.

    Outra regra literária muito popular diz que devemos escrever aquilo que gostaríamos de ter lido. Pois eu gosto sempre de ler o caos: mas um caos estruturado, que conhece as regras – um caos que sabe ser caos.

    A tua carreira em Lisboa tem sido fulgurante como humorista e em tantas outras atividades ligadas às artes e à comunicação. Como chegaste aqui?

    Sempre tive uma paixão pelo humor, mas dificilmente me consideraria humorista ou comediante – talvez um dia, com uma boa dose de autoconfiança e alguns calmantes no bucho antes de entrar em palco. Tento é embutir humor em muito do que faço, porque, a meu ver, o riso é o veículo mais fácil de conseguirmos passar uma mensagem, ou de explicarmos os nossos pontos de vista. Talvez seja, novamente, por esta necessidade que sempre senti da constante desconstrução – ou talvez essa necessidade tenha sido, ela própria, alimentada pelo humor.

    Porque o humor é tudo isso: é desconstrução, é questionamento, é esgravatarmos para encontrar o inesperado, o absurdo. É por isso que gostamos de ouvir piadas, de ler crónicas e histórias engraçadas, de ver programas de humor e filmes de comédia. Por alguma razão, conteúdos como os actuais programas de sátira política – principalmente na cultura anglo-saxónica, que acaba por influenciar todo o mundo –, que apontam um espelho, através do humor, ao que se passa à nossa volta, são tão populares, e líderes de audiências.

    O humor tem esse papel de desconstrução, e de influenciar opiniões, muito importante, apesar de quem o pratica profissionalmente tentar muitas vezes desmarcar-se dessa responsabilidade, alegando que são só piadas. Mas a verdade é que, e sabemo-lo: o humor dispõe bem e incomoda ditadores. Só por isso, já me parece bastante valioso.

    Pertences a uma geração de escritores que muito admiro, e creio que tenho dado conta disso nas páginas do Açoriano Oriental. Quando ir estudar para o continente e por lá ficar era uma espécie de glória perante os outros que ficavam, o que te fez regressar aos Açores e daqui prosseguir com a tua carreira?

    Não só temos registado o interesse do Vamberto nas gerações mais recentes de escritores açorianos como só lhe temos a agradecer por este holofote que nos aponta constantemente, e que acaba por nos guiar o caminho. É óptimo sentirmo-nos vistos, apreciados, reconhecidos por pessoas tão atentas à nossa Cultura, e que já tanto contribuíram para ela.

    De facto, ir estudar para o continente, extravasar, conhecer o além-mar é comum a muitos ilhéus, independentemente da área profissional que venham a escolher. Há um desejo de descoberta, de se conhecer as metrópoles, de se ser um grande cosmopolita. Mas o cosmopolitismo nada pode contra as “Saudades da Terra”. As metrópoles, aos poucos, vão perdendo a piada, o encanto, a novidade – aquele canto da sereia. Passam a ser a roda do hamster em que nos vemos aprisionados, em percursos pendulares e dias rotineiros. Começamos a apreciar a liberdade paradoxal que as ilhas nos garantem, já que estão rodeadas de mar – mas também estão repletas de tudo o que é nosso. Estão repletas do que nos inspira, do ar puro que nos alimenta, da calmaria que – no nosso caso – nos permite escrever, pensar, ter ideias, ter calma; não ter um metro para apanhar nem uma auto-estrada para atravessar em hora de ponta só para darmos um mergulho rápido em praias longínquas e atulhadas e regressarmos para um apartamento arrendado num complexo que nunca será nosso.

    Essa é outra questão, cada vez mais premente. Acredito que há muitos de nós que ainda queiram lá ficar, nas metrópoles, no êxtase da urbe. Mas ser cosmopolita já não é para o bolso dos portugueses. Muitas vezes, o regresso acaba por ser a solução mais económica e, embalada pelo magnetismo da terra-mãe, definitiva.

    Pessoalmente, encontro-me um pouco no meio desses dois cenários. Incentivado por uma pandemia mundial, acabei por regressar à terra natal, e cá fui regando as raízes que nunca chegaram a secar. Deixei de pensar nas metrópoles porque já não me apetecia pagar o que elas me cobravam, nem em termos financeiros, nem em termos de qualidade de vida. Deixei de ver a ilha como um porto de partida para conhecer novos mundos, e encaro-a agora como um porto de abrigo, ainda com tanto a realizar. E aqui consigo, realmente, ver as consequências das minhas acções, perceber a influência daquilo que faço, os efeitos do meu trabalho. A roda do hamster não é só uma roda, tem curvas e contracurvas, sítios para descanso e piqueniques, estações de serviço e apeadeiros. Se as oportunidades não existem, tentamos criá-las. E se, mesmo assim, não conseguirmos, então com certeza, vamos para fora, sejamos cosmopolitas, sem medos – mas também sem nunca nos esquecermos do sítio para onde provavelmente iremos sempre regressar: as nossas ilhas, onde conseguimos realmente viver, em vez de apenas existir.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 29 de março de 2024.

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