sexta-feira, 28 de abril de 2023

Pelo Mar Dentro, Ou A Nossa Poesia Nas Duas Margens

 


This literary world consists of many worlds, various languages, and many experiences/Este mundo literário é constituído por muitos mundos, várias línguas, e muitas experiências.

Diniz Borges, na introdução a Into the Azorean Sea


Comecemos necessariamente por Diniz Borges, o tradutor e organizador desta grandiosa antologia de poesia açoriana e luso-americana, cada poeta aqui traduzido para o que podemos chamar sem hesitação a sua segunda língua – uns para o inglês, outros para o português. Se para alguns destes poetas açorianos a língua de Shakespeare é-lhe ainda um tanto distante, não será o mesmo com o povo que deste há séculos ruma a oeste, continuamente transmitindo a sua experiência aos que ficaram em linguagens por vezes recortadas nessas duas línguas, enquanto os filhos destes, agora chamados lusodescendentes, utilizam naturalmente todas as palavras da sua formação familiar e formal, respingando-as com o que ouviram dos seus pais e avós, ou estudaram em escolas e academias de vários níveis. Por outras palavras, estamos perante uma obra que reúne 103 poetas, e na qual todos se reencontram sobretudo na temática comum que é ser-se açoriano nestas ilhas, e filhos e filhas que perpetuam a nossa existência ao longe. Estão muitos deles a dar conta de si numa escrita poética que ora recorda, ora ultrapassa em linguagens diretas, metafóricas e simbolistas a condição existencial das primeiras gerações imigradas, principalmente nos Estados Unidos da América e no Canadá a partir do século passado. Tem sido durante estas últimas décadas um ato contínuo lembrar as suas raízes e reafirmar com todas as palavras e versos que no seu ser mais profundo aceitam a sua sorte presente, mas nunca esquecendo a história que os colocou sem conflitos interiores ou de outra natureza nos seus mundos múltiplos. Esbatem todas as fronteiras externas e interiores como que num gesto artístico de completude e redenção dos que sofridamente deixaram o solo pátrio para lhes dar através do mais árduo e generoso trabalho todos os espaços do mundo.

Diniz Borges é esse filho ilhéu e pai na Diáspora que desde sempre ligou os dois mundos, quer como professor do ensino oficial da Califórnia, quer como intelectual e escritor presente semanalmente na nossa imprensa nos dois lados do Atlântico e nos seus livros. Fundador do Portuguese Beyond Borders Institute, da Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, e da Bruma Publications como a sua voz criativa para todos, relembro ainda que mais nenhum de nós foi tão longe no Pacífico norte-americano quanto à dinamização e divulgação da nossa cultura e literatura – o despertar dessas vozes que nos faltavam num diálogo literário e multicultural que ao rego da terra frutífera americana acrescenta e completa a um tempo a originalidade da nossa sobrevivência e a universalidade dos antigos navegadores à descoberta e na construção de dinâmicas comunidades em terras que já há muito deixaram de nos ser estranhas. O que venho dizendo sobre esta outra comunidade que se estende do Atlântico ao Pacífico está desde logo insinuado no próprio título desta extensa coletânea: Into the Azorean Sea: Bilingual Anthology of Azorean Poetry, assim sem mais distinções linguísticas, culturais ou temáticas.

O livro está organizado por ordem alfabética do nome dos poetas, abre com Adelaide Freitas e encerra com Vitorino Nemésio. Pelo meio mistura as traduções de inglês para português, e vive-versa. Está na moda perguntar-se “para que serve a poesia”, o que acho a mais vazia e insignificante de todas as perguntas literárias. Serve “para comer”, como diria um dia Natália Correia, não me diz nada. Outros perguntam se tem uma função social qualquer, o que também pouco ou nada significa. No entanto, é talvez a mais antiga forma escritural na cultura Ocidental, por alguma razão, suponhamos. O reflexo da arte literária é sempre múltiplo, surpreendente porque o poeta se desvenda em toda a sua singularidade. A poesia de nada serve se não conter nos seus versos o estado interior dos seus autores ante a sociedade que os rodeia, direta ou por inferência vista por esse olhar artístico que nos leva ao outro lado do espelho, a uma nova visão íntima que desperta no seu leitor a consciência de si próprio ou do outro que está ao lado, ou, uma vez mais, o eu por entre a multidão que o rodeia. O poeta fechado numa redoma e desligado da sua comunidade, o poeta no seu fátuo academismo, por outro lado, será porventura a metáfora de uma luz extemporânea que inevitavelmente se apagará para sempre, enquanto o mundo à sua volta a esquece e continuará na sua luta inglória ou triunfal. Há na literatura açoriana como que uma obsessão com a geografia e o que ela nos provoca no modo de ser e estar, assim como um desejo constante e irrequieto de ficar e partir seguido pelo regresso aos ritos sagrados e profanos da nossa sociedade, aqui como no além-mar. Roberto de Mesquita está presente nestas páginas, é um outro exemplo perfeito de como a nuvem negra ou chuvisco da ilha agrava real e simbolicamente a solidão do nosso cerco, tudo na natureza tornando-se uma metáfora do nosso estado de alma. Os poetas luso-americanos, por sua vez, trazem-nos um modernismo que muitos tinham por inesperado de como o passado desconhecido da terra ancestral não deixa nunca de interpelar a sua condição nas duas mais vivas sociedades a oeste, os EUA e o Canadá, o mundo literalmente inteiro em si, um quotidiano feito de praticamente de todas as línguas e costumes das mais distantes proveniências, todos em busca do seu lugar e do equilíbrio humano caminhando sobre o fio ténue que atravessa a casa comum em reconstrução perpétua. É esta a originalidade da nossa literatura: não deixar que a língua nos separe, fazer do passado o presente, fazer do presente a continuidade da sua história para além de todas as fronteiras, perpetuar o imaginário sem horizontes que tem sido o nosso.

Gregory Rabassa, o maior tradutor norte-americano das línguas portuguesa e hispânica, não acreditava muito no conceito falsamente teorizado do que habitualmente passa por “tradução”, tal como o confessa em If This Be Treason, as suas memórias publicadas pouco antes do seu falecimento em Nova Iorque. O que existe é a interpretação livre de um texto, que começa por uma simples pergunta: como se transmite este passo para outra língua, como expressamos esta ideia ou conceito, como nomeamos o tempo e descrevemos uma personalidade. Diniz Borges faz o mesmo nessa profunda interiorização de cada texto. A palavra é inevitavelmente renascida de outra epistomologia e significação de todos estes poemas, mantendo-se fiel, necessária e eticamente, a cada original. Quando lemos um texto traduzido, e logo esquecemos que foi originalmente escrito noutra língua, eis o primeiro e talvez único teste de que precisamos, procedendo com segurança e prazer da leitura. O que sobressai do longuíssimo conjunto de poemas neste livro é precisamente a unidade temática saída das formas e gramáticas diversas que o verso livre permite. A poesia sem ideias, a que se limita ao jogo de palavras e a metáforas e símbolos desconexos, de pouco vale. Só que o interiorismo dos nossos poetas presentes nestas páginas nunca acontece num vácuo, ou na fatuidade da palavra. É sempre a memória vinda de uma longa história da terra e família ancestrais que enquadra a vivência de cada um destes poetas. Tanto numa língua como na outra, reconhecemos de imediato que algo de novo está a ser dito ou cantado, a força da açorianidade (azoreanity) nunca desfalece, nem sequer no caso dos que nunca nos visitaram pessoalmente. Recordo que quando traduzi há uns bons anos um poema de Michael Garcia Spring (também aqui presente) que descrevia a travessia do canal entre o Faial e o Pico, a sua precisão era de tal modo aguda, que lhe escrevi a perguntar quando é que ele tinha visitado os Açores. Respondeu-me que nunca tinha estado cá, que o que ali estava escrito era parte das histórias que ouvira da mãe e da avó. Em pouco veio visitar-nos por uns dias, e era como se tudo, dizia-nos, conhecesse desde sempre. Outros poetas que Diniz Borges junta neste livro tiveram experiências semelhantes, quando a sua vinda cá acontece é só uma confirmação da pertença ao mundo dos seus antepassados próximos e longínquos. Se uns revivem a terra onde nasceram, ou simplesmente dão-lhe continuidade íntima mesmo à distância, outros mantêm a memória viva de palavras e gestos nas suas casas norte-americanas, o cheiro da cozinha a sopa de couve e o folar da primavera.

Into the Azorean Sea: Bilingual Anthology of Azorean Poetry é um tesouro que por vezes nos brilha enquanto reaviva a imaginação de quem os lê, mesmo abrindo o livro aleatoriamente. O corredor aberto entre os Açores e a América e Canadá revisitado pela beleza de um verso, revivido em andanças imparáveis. O nosso imaginário comum reinventado por alguma da melhor literatura açoriana escrita em duas línguas. “O imaginário da imaginação”, como escreve Salman Rushdie num recente livro de ensaios sobre outras literaturas.

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Into the Azorean Sea: Bilingual Anthology of Azorean Poetry (tradução, seleção e organização de Diniz Borges), Ponta Delgada, The Press at California University, Fresno, Letras Lavadas Edições, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 28 de abril de 2023.



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