À esquina de. À esquina. Da. Tristeza. Alguém. Cinco pessoas atravessando a praça. Uma grande multidão. Ninguém.
Manuel Alegre, Toda a Prosa
Por certo que a obra de Manuel Alegre tem recebido toda a atenção que um grande autor merece, o silêncio de alguns sobre uma das mais longas carreiras da literatura portuguesa contemporânea torna-se meramente ruído inconsequente de Café perante a sua palavra escrita e pública, inclusive perante a dos seus críticos e demais estudiosos. Acaba de ser publicado Toda a Prosa, oitocentas e vinte seis páginas a que nenhum dos leitores da poesia inaugural de Praça da Canção ou do romance Jornada de África poderá ficar indiferente, tudo junto, sem dúvida, a mais significante narrativa literária portuguesa que nos anos da nossa modernidade antecederam a luta pela liberdade e tudo o que se seguiu, até hoje. Desde há muito que alguns ensaístas previram que o modernismo literário integraria nas suas melhores páginas o que se tinha por ser só domínio da poesia, propriamente dita. Entre nós viria a acontecer o mesmo, e Manuel Alegre foi deste de sempre um dos principais escritores a quebrar certos protocolos na ficção, em que qualquer um dos seus parágrafos narrativos poderão ser estruturados como um poema, a gramática transformada como elemento essencial da subversão das regras dominantes – quer na forma como na voz que nos chega em silêncio elíptico. A epígrafe de acima é esse verso prosaico no andamento narrativo num dos contos incluídos nesta sua prosa completa. A sensação ao chegarmos às últimas páginas desta coletânea nunca será um fim ou uma conclusão, mas a sim espera pela peça seguinte. Dizer algo de novo sobre esta longa viagem feita da experiência vivida ou testemunhada já não será fácil, mas creio que cada leitor atento encontrará sempre, para além do que a redescoberta que leituras sucessivas de qualquer obra nos espelha, temas e formas que nos haviam passado despercebidas. Entre uma prosa quase sempre situada entre a realidade e a ficção, entre a biografia e a imaginação, em romances, contos e memórias, estão ainda geografias humanas e lugares que ora estão por perto na nossa própria História, ora na condição existencialista de outros que confirmam a universalidade do nosso ser e estar.
É o caso, para mim, do que chamarei alguns dos seus contos “americanos” em O Homem do País Azul, de 1989, como “Nevermore” e “City Square”, em que o narrador tem uma breve passagem por São Francisco, livros de Jack Kerouac e Allen Ginsberg numa montra, e Nova Iorque ou Baltimore a lembrar Edgar Allan Poe e António Nobre . Uma rua desconhecida, uma famosa praça revivida por instantes, a intertextualidade de autores radicalmente oposta ao que conhecemos da epopeia e anti-epopeia camoniana juntamente com os mais profundos chamamentos e alusões contínuas a outros autores nossos como Fernando Pessoa, por exemplo, a literatura francófona sendo ainda outro ponto referencial de transfigurações diversas. Ao heroísmo de uns seguem-se as metáforas de medos ou incertezas contidas ou provocadas por um “outro lado” desconhecido, como no conto lisboeta com o mesmo título que tem no centro um conspirador contra a ditadura salazarista. “A esquina” citadina também aparece noutra parte como metáfora de viragem para a insegurança do que nos é invisível mas procurado. A rua numa grande cidade, uma vez mais, vivida na solidão absoluta entre essas multidões de que pensamos ser parte, ou por ela rodeados lentamente enquanto se desfaz a noção da sua companhia empática, até a um encontro inesperado com uma só pessoa entre todos os outros desconhecidos, e que nos faz sentir a completude eventualmente solidária do momento. Estas são as narrativas distintas de um antigo militante político não em estado de negação, nunca – só consciente de que a sociedade segue a sua vontade ou fatalidade, agora derramada num copo ou num encontro ocasional com quem poderá simplesmente aceitar a sua sorte, ou num lamento do sonho desfeito. Raramente um texto literário combina a consciência aguda do que foi a luta por outra ordem das coisas com a aceitação aparentemente quase pacífica dos dias presentes em contra-corrente. Se a literatura é necessariamente o espelho do seu tempo histórico, estas narrativas de Manuel Alegre são escritas no fim de um milénio e na entrada de outro, a sua própria biografia é a um tempo vivamente reimaginada como um reflexo da coletividade deambulante nas ruas ou no silêncio entre quatro paredes.
“Era um domingo ao fim de tarde – diz o narrador de “Nevermore” – e eu passeava nas ruas desertas sentindo dentro de mim, quase fisicamente, o roçagar do tempo e a nostalgia das coisas irremediavelmente perdidas. Era essa terrível beleza de São Francisco, naquele fim de tarde de um Setembro carregado de folhas levadas pelo vento. Podia falar também do regresso de Sausalito e da solidão deslumbrada da grande ponte, seus arcos entre luz e névoa, as vagas do Pacífico e a sugestão do desconhecido, à direita, Alcatraz, à esquerda, entre barcos e espuma. Mas nada de tão intensamente triste e belo como um passeio por Haight-Ashbury, o vento, as folhas e essa ausência-presença que torna tão dolorosa o encanto das grandes cidades onde se passa uma só vez à procura do tempo perdido. Que podia eu desejar senão a ternura do desamparo e do desencontro?”.
Podem procurar qualquer escritor americano que tenha escrito melhor e com tanta arte sobre a única cidade mítica da Califórnia, a cidade de Lawrence Ferlinghetti, ou, parafraseando um dos títulos poéticos do grande poeta, as fantasias da nossa mente, A Coney Island Of The Mind, a poesia corrosiva como entretenimento do Nada, ou ainda sobre o que Henry David Thoreau disse ser o “desespero tranquilo” de uma das mais (supostamente) vivas sociedades do Ocidente. O narrador de Manuel Alegre já não encontra os rapazes e as raparigas com flores no cabelo, só uma espécie de botequim com o que resta da revolução, agora encerrados numa escuridão reveladora a cantar o que são só memórias, e a dar de beber à dor.
Serão poucos os escritores portugueses que viveram o nosso tempo com esta intensidade, com esta fulgurância tranquila, que foi de um “Portugal amordaçado” e guerra colonial em África, de Paris à Argélia durante anos, e depois em viagem pelas geografias em que a alegria se junta à solidão, às multidões no cansaço existencial despido de significado – sem nunca deixar de resistir pela ação e pela literatura cuja temática mantém a unidade de tão vasta obra.
A esquina de uma vida, essa já referida metáfora que é o outro lado, o da incerteza, o da solidão em que, a seu modo, é o estar só e ser obrigado a tomar decisões que podem ser de vida ou morte interior, ou só o saber-se uma ínfima parte de todo um universo, retratado numa só rua acidental, que pode ser em Lisboa, Paris, Luanda. Argel ou São Francisco, o suposto alicerce de toda uma sociedade irrequieta ou a ruir, por onde se caminha sem mais nada se ver ou sentir.
Toda a Prosa vem prefaciado por Paula Morão, a reconhecida crítica e ensaísta da Universidade de Lisboa. A academia portuguesa, desde Vitor de Aguiar e Silva, vem prestando, finalmente, a atenção mais do que merecida a um autor incontornável, naturalmente tanto pela grandeza da sua arte nas mais diversas formas como pelo testemunho do melhor e pior (aqui politicamente falando) que foi a última metade do século passado – A poesia de O Canto e as Armas, a prosa de Alma. A dor do combate e a memória dos que amaram e amam o autor, a história de um povo apático a esconder a rebeldia interior ante a indignidade dos tiranos nos seus variados disfarces em toda a parte. Paula Morão contextualiza com saber e leitura profunda da obra de Manuel Alegre o fio condutor que interliga o primeiro ao mais recente livro, abre ao leitor outras janelas de visão e interpretação de um dos mais longos e grandiosos atos literários da nossa geração, dos poucos que é larga e publicamente cantado, recitado, lido no prazer do silêncio e pensamento.
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Manuel Alegre, Toda a Prosa (prefácio de Paula Morão), Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, de 21 de abril de 2023.
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