Os críticos, do fundo dos seus corações, adoram continuidades, mas aquele que vive apenas com a continuidade não pode ser um poeta.
Harold Bloom, A Angústia da Influência
Têm sido tempos riquíssimos nos Açores quanto a produção cultural, em todos os géneros. Acho que somos únicos no país, quando comparados com outras regiões de igual dimensão, que mantêm uma produção literária tão consistente e quantitativa. Os Açores contam desde há alguns anos com uma grande editora que dá pelo nome de Letras Lavadas, da Nova Gráfica em São Miguel, assim como com a Companhia das Ilhas, no Pico, e ainda outras pequenas editoras que vão publicando a um ritmo mais reduzido, mas que influenciam muito a nossa vida cultural, como a Artes e Letras da Livraria SolMar. Junte-se a isto as outras livrarias de porta aberta, pelo menos em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Pico e, apesar das queixas de sempre, não se passa uma semana sem um ou mais lançamentos de livros, atividade esta dispersa pelas mais variadas instituições públicas e privadas, juntamente com outros encontros literários, musicais e teatrais, assim como debates sobre temas históricos, regionais e nacionais. Mencionar nomes de todos autores e dinamizadores exemplificativos de todos os quadrantes nessas áreas seria fazer uma bibliografia quase infindável. Boa parte destes eventos são habitualmente publicados por alguma da nossa comunicação social e por outras vias digitais. Quando ouço queixas de qualquer espécie sobre estes temas e questões relacionadas peço que prestem melhor atenção ao que na realidade acontece – e que tenham em conta a sua própria desatenção ou sentimentos menos nobres sobre o trabalho contínuo dos nossos autores.
Dos escritores mais conhecidos entre nós, residentes dentro e fora dos Açores, nunca esquecendo os da nossa Diáspora, estamos falados. Se alguns deles dão continuidade ao que já temos por um cânone literário mais estabelecido do que alguns pensam por inúmeros textos que pecam, por enquanto, pela sua dispersão, resta só a espera de quem se atreva a uma proposta em livro, que dê lugar tanto à concordância como à contestação. Um cânone é sempre subjetivo por natureza, depende de quem o faz e das influências institucionais ou da crítica independente, essa, sim, pouco comum. Começam a aparecer nomes que, nunca rejeitando a tradição literária que lhes tem servido de ponto de partida, conjugam os saberes do passado para logo de seguida cortar com eles, agora na forma e no conteúdo. Numa luta simultaneamente de absorção e depois, mais do que negação, será a tentativa de levar tudo a outro patamar ou a páginas, por assim dizer, mais ou menos inexploradas. Veja-se, por exemplo, um recente volume como Avenida Marginal, Poesia, da já mencionada Artes e Letras, pela sua diversidade de poetas presentes, não só das ilhas como de outras partes do país. Sete Cartas de Artemísia, de Henrique Levy, é uma obra notável em que a representação da mulher está no centro da sua temática açoriana. Se também é verdade incontestável que as autoras açorianas sempre deram conta de si, por outro lado, raramente têm recebido a atenção focada de que outros escritores têm desfrutado na apreciação de obras que têm estas ilhas como referência já de séculos. Claro que há outros livros que merecem o destaque na nossa imprensa, mas é difícil acompanhar toda esta produção literária quando são poucos a dedicarem-se, uma vez mais, à crítica literária, ou mesmo ao jornalismo literário lato sensu. Temos já três gerações no ativo, e que contam com notáveis escritores. Não vou mencionar, uma vez mais, muitos mais nomes aqui, mas estão todos eles espalhados por várias ilhas, e alguns deles residentes ou a estudar nas nossas universidades.
Quanto a escritores e poetas que merecem já toda a confiança na poesia, lembro Leonardo Sousa, que já deu provas de si em pelo menos dois livros de poesia, o mais recente intitulado Contas de Cabeça, em que o jovem micaelense, agora estudante na Universidade Nova de Lisboa, alia o classicismo de todos os tempos a uma modernidade quase sem igual entre nós. Haverá outros, por certo, a merecerem a nossa atenção, com especial ênfase para Renata Botelho, particularmente a partir do seu pequeno volume de poesia Small Song. Desde escritores ainda na casa dos vinte anos de idade, aos que estão entre eles (Joel Neto e Nuno Costa Santos, só como dois outros exemplos) e a minha geração, não ficamos a dever nada a ninguém. Muito pelo contrário. Retirem os açorianos do cânone literário nacional, e falo desde Gaspar Frutuoso, do século XVI, até aos nossos dias, e verão a sua gritante diminuição. Analogia: tirem a literatura sulista dos Estados Unidos da América escrita por brancos e negros, tirem a música afro-americana dos Blues e Jazz e a da geração de um Elvis Presley e Roy Orbinson, sulistas eles também, e verão o que fica no grande mosaico literário e cultural do país gigante a Ocidente.
Depois existem ainda, consolidados, eventos anuais como O Outono Vivo, da Praia da Vitória, agora retomado depois da pandemia, sem dúvida um dos melhores festivais culturais e literários do nosso país. Tem dado voz e divulgação a muitos escritores açorianos. A sua Feira do Livro é algo de admirável. O Arquipélago de Escritores, dirigido por Nuno Costa Santos e Sara Leal, com sede, por assim dizer, em Angra do Heroísmo, também se tornou algo de inédito entre nós (depois dos Encontros da Maia no fim dos anos 80), anualmente dividindo as suas sessões por duas ou mais ilhas com escritores vindos de toda a parte de Portugal e do estrangeiro De resto, as nossas Bibliotecas Públicas e Arquivos Regionais mantêm uma atividade constante, desde o lançamento de livros a encontros literários de vários géneros, todos eles comemorativos da nossa memória coletiva nos contextos locais e nacionais.
Outra questão que me parece muito pertinente quanto à literatura que tem os Açores como ponto de partida temática. A América do Norte tem já um substancial grupo de escritores e poetas, que se recusam a não fazer chamamentos constantes às suas raízes ancestrais. Trata-se de segundas e demais gerações nascidas nos Estados Unidos e no Canadá. Escrevem em inglês – mas pertencem por inteiro à nossa grande Tradição literária – pela historicidade e, repita-se, temática de todas as suas obras. Ainda há poucas semanas, Manuel Alberto Valente chamava a nossa atenção na sua coluna semanal da Revista do Expresso, “O outro lado dos Livros”, a esse fenómeno da literatura lusodescendente, e à qual raramente o sistema literário português presta alguma atenção. Manuel Valente menciona aí talvez a única exceção que é Katherine Vaz, que começou a ser publicada na editora ASA, pela mão do mesmo colunista, e que no fim deste ano vai ser de novo publicada com a mesma chancela, mas agora pertencente ao grupo LeYa, de Lisboa.
Salvam-nos,
no que a
estes
escritores concerne, duas
editoras nos EUA que
estão
a dar conta sistemática
de
tudo isto: A Tagus Press, da Universidade de Massachusetts, em
Dartmouth,
e
da Universidade de Brown,
e a Bruma Publications, da Universidade Estadual da Califórnia, em
Fresno, fazendo
ambas
sair,
agora em
estreita colaboração com a Letras Lavadas, as
publicações contínuas não só de alguns de esses escritores, como
estão a traduzir para o inglês escritores, poetas e dramaturgos
açorianos. São essas
mesmas universidades norte-americanas que
coordenam
e publicam ainda duas grandes revistas literárias,
e que aliam a escrita académica e de investigação a literatura
criativa em qualquer uma das suas formas, dando voz a autores através
de longas entrevistas que interligam as gerações do presente à
memória ancestral, quase sempre açor-americana. Falo
da Gávea-Brown:
Revista Bilingue De Letras e Estudos Luso-Americanos,
fundada e dirigida por Onésimo Teotónio Almeida desde 1980, e de
Filamentos Artes
E Letras Na Diáspora Açoriana,
lançada há poucos
meses
pela Bruma Publications, por sua vez pertencente ao Portuguese Beyond
Borders Institute, todo o
projeto
soba direção de Diniz Borges. Vou usar novamente
a palavra “enorme” como avaliação destes esforços culturais
abrangentes da nossa vasta presença, sempre com a memória coletiva
do arquipélago açoriano no seu centro e razão primordial de ser.
Leonardo
Não esqueçamos o que se começa a delinear nesta outra margem da nossa condição existencial, da nossa história transfronteiriça: A Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em Lisboa, inaugurou já uma nova coleção expressamente dedicada à divulgação literária da nossa Diáspora, tendo neste momento publicado dois livros: Cântico sobre uma gota de água, de Eduardo Bettencourt Pinto e Mar e tudo e Outros Casos, de José Francisco Costa. O primeiro já foi lançado em Ponta Delgada, e o segundo será apresentado cá no próximo mês de junho. Esta é uma iniciativa de Onésimo Teotónio Almeida e de Augusto Santos Silva, atual Presidente da Assembleia da República, e que foi eleito deputado pelo círculo Fora da Europa.
Não há que se perder tempo a reinventar a roda quanto a questões culturais e literárias ligadas aos Açores e à sua gente em toda a parte, desde as ilhas e continente às mais distantes geografias, em que outros escritores do Brasil estão incluídos há séculos, e igualmente presentes neste outro lado do mar: a sua história e arte fazem parte indelével dessa nossa Tradição. Num mundo irreversivelmente globalizado, o território-pátrio não poderia estar mais vivo. Isso mesmo, a convivência entre a continuidade e a angústia de fazer do velho o novo.
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Parte deste texto foi retirada e expandida de uma recente e breve entrevista concedida ao Diário Insular (Angra do Heroísmo) sobre a atual produção literária nos Açores. A ilustração aqui é do livro de Onésimo Teotónio Almeida, Minima Azorica: O meu mundo é deste reino, Companhia das Ilhas, 2014.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 7 de abril de 2023.
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