Este suposto “documento” é pura ficção. Qualquer semelhança com o histórico é mera coincidência.
Carlos Fagundes, A Montanha Cobriu-se De Lava E Outras Estórias
Estas são as últimas palavras do novo livro de Carlos Fagundes, A Montanha Cobriu-se De Lava E Outras Estórias, uma longa sequência de memórias vividas ou conhecidas interligada por uma prosa da imaginação tão fina que o leitor nunca descobre onde acaba a realidade relembrada e começa a invenção pura. Carlos Fagundes é um escritor que optou pela longa passagem do tempo da sua própria vida para nos surpreender agora com um ato literário simultaneamente vindo da nossa longa tradição literária enquanto revela uma desusada capacidade de juntar linguagens que se repetem de página a página sem nunca perderem a cada instante a surpresa de cada momento revelado, quase sempre em festividades comunitárias, desgraças da natureza açoriana ou da miséria dos tempos idos em ilhas cuja sobrevivência sempre dependeu exclusivamente da força interior de homens e mulheres sem estatuto social. O presente volume dá seguimento ao que o autor já tinha demonstrado em Entre o Mar e a Rocha, com a ilha das Flores como seu referencial natal antes da sua partida para uma carreira de professor algures no Continente, onde também a noção de ruralidade viva parece nunca ter sido abandonada nessa sua sua longa carreira. Não queria aqui dizer que a vida em ilha é-nos uma obsessão sem explicação clara, mas a verdade é que as pequenas comunidades marcam de forma indelével tudo o que poderá vir depois. Nada disto nos é exclusivo – quase toda a literatura nas mais variadas línguas recuam, por assim dizer, às origens dos seus criadores. A modernidade literária iniciada nos séculos mais recentes como que representa uma espécie de fatalidade indecorosa que esses autores enfrentam de uma forma por vezes enfadonha, como um mero contraponto aos dias das suas alegrias, dos seus testemunhos do riso e do choro que é a condição humana. É agora a ilha do Pico, onde Carlos Fagundes residiu mais tempo após a sua própria epopeia tranquila de vida, que está em foco num tempo que vai dos dias primordiais do povoamento até à nossa contemporaneidade. Por entre as forças e fraquezas humanas e a redenção Sagrada que definem a singularidade da sobrevivência nestas ilhas, eis o melhor e o pior de como somos, a inevitável transgressão de usos e costumes frente a frente com a visão das vidas ordenadas e comandadas pela mítica de crenças e bondades reais em ritos do Espírito Santo e a arrogância na firmeza dos que se auto-elegem como mandantes da sociedade – pais ofendidos, padres cobertos de uma sacralidade questionável, a luta contra o fogo da terra e do mar, a insistência que é a dor de enterrar os mortos e logo depois continuar no trabalho dos dias e das noites.
A Montanha Cobriu-se De Lava E Outras Estórias está dividido por essa prosa criativa em que a vida entre a terra entremeada de pedras negras e o mar medonho nunca está livre da possibilidade da morte chegar a qualquer momento, por mais que o sol brilhe ou a bruma cubra cada casebre, cada vida também quase sempre dependente da pouca fertilidade cavada pela enxada ou pelo barco de boca aberta outrora na perigosa perseguição do sustento marinho. Nada disto será novo na nossa literatura, só que são raras as páginas que não conseguem fugir de certos clichés. Algo na prosa de Carlos Fagundes, que escorre frase a frase com toda a segurança e beleza, confirma o famoso ditame de Harold Bloom, o que ele chamou de “a angústia da influência”. Ninguém escreve assim sem conhecer profundamente os seus antecessores literários, mas tem como vontade artística inerente tudo subverter, sem necessariamente contestar por inteiro, na procura da sua própria originalidade. É o rever de toda a herança literária conforme a sua própria experiência e visão do mundo, tem de conseguir fazer que o leitor esteja perante o “teatro” de outras personagens e cenários, que chamam a si outras cores, formas e gestos. A história nunca é, nem pode ser, definitiva, fechada. A complexidade de cada uma dessas novas personagens, a transformação dos seus olhares e sentir perante a ebulição vista ou sentida em seu redor é precisamente o que requer a revisitação de um grande escritor, que inevitavelmente será também a fonte que levará outros mais tarde a inesperadas representações destas geografias comuns. Os cânones literários, os nomes supostamente já clássicos entre nós que escreveram sobre as suas noções de quem somos e como somos não encerraram de modo algum o ato literário, nem na forma nem no conteúdo; foram tão-só outras vozes de outro tempo. Por certo que são referências essenciais na nossa literatura. Só que a escrita de Carlos Fagundes coloca-o lado a lado com qualquer um desses autores, e de que maneira singular, desautorizando a endeusar, por inferência, seja quem for nesse nosso hipotético altar de eternidade sem companhia. As páginas de que falo aqui não são meras crónicas. Vão de uma outra espécie de autoficção à releitura da História comunitária, como se dos anais franceses se tratasse, a história local revista por quem a viveu também nas margens e sem poder. A realidade é o que cada personagem entende ser a partir do seu quotidiano, vitória e infelicidade, astúcia ou ausência dela, a nossa humanidade recuperada em contextos visíveis ou imaginação irrequieta.
A
mais mítica ilha açoriana ainda tem muito a despertar na nossa
noção de açorianidade. Ao
contrário do que temos por ser a nossa condição atlântica envolta
em suposta pasmaceira, é de todos os modos o contrário. Mesmo para
quem nunca sai destes espaços cercados, o horizonte por
perto nunca
nos foi um limite de
vida ou de
sonho. Esqueçam o ir de ilha em ilha, a curta viagem dentro da casa
comum. Carlos Fagundes sabe disso, e mesmo que o não transmita em
direto, a sua própria busca desde jovem – estou a retirar isto da
nota biográfica que acompanha os seus livros – por outros lugares
e gente, modo de vida ou carreira, permite-lhe conjeturar o movimento
constante, real ou metafórico,
dos que num primeiro olhar aparentam a aceitação passiva do seu
destino. Muita da nossa História está em cada uma das suas
estórias,
os continentes à distância e do nosso destino sempre parte
integrante
do nosso imaginário. O
que
temos por ser o nosso torrão natal é constituído
pela
diferença de cada um na geografia imediata dessas
nossas raízes – a sua força não é de uma vida estática; é a
do movimento constante, a da contestação ao que
outros dizem ser o
destino irreparável, é
o
desafio pacífico da descoberta e da incerteza, dentro ou fora da
ilha.
foto de Aníbal C. Pires
“O dia em que a minha tia Augusta partiu para a América – diz uma das narradoras na estória que encerra o livro – foi o mais triste e desventurado dia da minha vida… E só, alguns anos mais tarde, já feita mulherzinha, eu entendi os motivos por que, afinal, a minha tia Augusta partira para a América naquele fatídico dia: É que a tia Augusta não queria continuar a trabalhar e a viver mais como uma escrava, a andar de gatas a esfregar a casa duma ponta à outra, a ir lavar cestos de roupa ao tanque da vizinha Adelaide, a acarretar baldes e bilhas de água do Poço da Maré para casa por veredas sinuosas e pedregulhentas, a tirar o esterco e a limpar o curral do porco, a acarretar à cabeça molhos de lenha e cestos de batatas e de inhames, a cavar a terra, a semear e a sachar o milho, a fazer o canteiro da batata doce, a acarretar cestos de uva por canadas íngremes e escarpadas… e, pior do que isso, a fazer todos estes e muitos outros árduos trabalhos sem ganhar um escudo que fosse, com que pudesse, ao menos, comprar um par de sapatos ou um vestido para estrear na festa do Senhor Bom Jesus ou pelo Espírito Santo”.
O passo que acabo de transcrever não faz justiça ao longo parágrafo sobre as tribulações de uma população pobre – mas que sobreviveu heroicamente ao longo dos tempos. Uma vez mais, Carlos Fagundes faz das linguagens comuns em qualquer povoação nossa a arte que humaniza os que nunca tiveram voz, e não apenas demonstra o que outros escritores pensaram ser “engraçado” e que do alto da sua intelectualidade também “sabiam” de como pensa e fala o “povo”. O autor faz das margens o centro do que tem sido a nossa vida nas ilhas açorianas, tal como outros o fizeram noutras línguas e espaços longínquos. Há outra leitura possível desta prosa sustentada em centenas páginas, tal como aconteceu com o já referenciado Entre o Mar e a Rocha: quem fez, sempre, a História dos Açores foi a maioria dos deserdados, na sua força braçal e na imaginação sem medo nem limites. Reergueram constantemente os seus pedaços de terra, de entranhas raivosas ou submersas em águas nada menos ameaçadoras. A nossa suposta elite, os supostos descendentes dos Capitães-Donatários, que raramente ou nunca punham cá os pés, ficavam dentro da sua riqueza herdada, nas suas casas senhoriais, com um piano calado e as janelas fechadas. Não fossem ainda algumas forças externas nos nossos dias, as que investem em negócios que vão além de filhos e parentes, e os Açores seriam ainda tal como as representações que Carlos Fagundes tão brilhantemente estampa nestas páginas. A sua contenção linguística esconde a fulgurância significante da nossa melhor literatura.
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Carlos Fagundes, A Montanha Cobriu-se De Lava E Outras Estórias, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 14 de abril de 2023.
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