A poeta considera que apenas a recuperação da alma portuguesa, através dos símbolos da nossa cultura, poderá resgatar Portugal do estado decadente em que se encontra.
Ângela de Almeida, Natália Correia: um compromisso com a humanidade
A citação que aqui vem em forma de epígrafe foi tirada do grande ensaio que Ângela de Almeida escreveria em 2019 quando publica o livro Natália Correia: um compromisso com a humanidade. Trata-se de uma edição híbrida e grandiosa quanto ao texto da sua proeminente estudiosa, a reprodução em foto de originais da poetisa, assim como outras fotos e ilustrações. O ensaio de Ângela de Almeida é primoroso, não só nas perspetivas de estudo e leitura que nos abre, como no aparato bibliográfico que tudo isto acompanha. A biografia, por outro lado, e o estudo crítico de uma vasta obra como a de Natália Correia é um contributo enorme ao nosso essencial entendimento do que para nós significa uma vida multifacetada em que o imaginário de todo o nosso país só é completo pelas ilhas de nascença da autora, estas que lhe foram sempre a referência principal da sua pessoa, de muita da sua poesia, ficção, teatro, ensaio, e escritos-outros. Não me proponho aqui neste tempo e espaço limitado entrar pelos pormenores dos estudos sobre Natália Correia que têm ocupado boa parte da vida de Ângela de Almeida, complexos demais e que só uma especialista na sua obra desvenda em prosa simultaneamente académica e dirigida ao leitor conhecedor, ou que quer conhecer, o que esteve e está por detrás de uma autora que atravessou boa parte do século passado no seu melhor, em termos estritamente literários, políticos e ideológicos nos instantes históricos de maior gravidade do nosso país.
Creio que também já percebemos todos que quem gosta de livros gosta de quem os escreve – se não do autor em termos pessoais, do seu estatuto, isso sim, de artista que nos traz as imagens de quem somos, de quem não somos, ou não gostaríamos de ser, mas dão-nos esse espelho de nós mesmos ou dos que temos como sendo o Outro. O ano após a morte de Natália Correia em 1993, Ângela de Almeida faz sair Retrato De Natália Correia, uma fotografia que nos começa abrir esses outros caminhos ou ângulos interpretativos da assombrosa obra da micaelense, natural aqui da Fajã de Baixo. Toda a grande literatura é irremediavelmente autobiográfica, cada personagem um todo ou um pouco do próprio autor, da sua experiência vivencial, das suas origens geográficas e sociais. Podem negá-lo quanto quiserem, mas ninguém escreve num vazio, do nada, mas sim da sua própria pessoa. Factos vividos, memórias da terra, famílias, e toda a gente que lhe foi e nos é significante, todos que despertaram um certo imaginário do mundo, um imaginário do passado, os sonhos de um futuro ou as utopias interiorizadas em cada um deles são as chaves, por assim dizer, indispensáveis à desconstrução de signos e significações nas mais diversas e consequentes obras dos nossos arquivos criativos e do que imaginamos ser a nossa História e o nosso presente.
Natália Correia: um compromisso com a humanidade, de Ângela de Almeida, ela própria escritora e poetisa, foi grande amiga e uma das leitoras açorianas mais atentas a uma obra singular, que vai para sempre perdurar na nossa imaginação, a eloquente noção de um tempo e de um lugar, que são estas ilhas, todo o nosso país, todo um universo da nossa humanidade comum para além de quaisquer fronteiras. Poderemos começar por aqui: o livro de Ângela de Almeida tanto aproxima o leitor aos mundos vividos por Natália Correia como oferece um fio condutor do que antes poderiam ter parecido livros desconexos, ideias avulsas ou caprichos literários fugazes. Cada grande autor, pois, merece um biógrafo ou retratista. Esqueçamos as suas incursões políticas institucionais temporárias, e lembremos a mulher escritora e anfitriã do dia e da noite tão bem recordada por Fernando Dacosta, exatamente num outro precioso livro intitulado O Botequim da Liberdade.
Do Retrato de Natália Correia sobressaem, para além do que Ângela de Almeida chama “o triângulo afectivo” da autora, constituído pela mãe, por uma irmã e por ela própria, Natália, a exaltação do amor que daí nasceu e depois o registo comovido de sucessivas e inevitáveis perdas pelos vários caminhos cruzados e pelo afastamento no tempo, dois impulsos temáticos e metafóricos, o dialogismo e a dialética entre a Poesia e o Poder, o insistente regresso à Ilha pelo meio, ou a uma ilha de utopias interiores e espirituais, uma tentativa de rebater a dessacralização do Homem, de recuperar o amor e o humanismo que ela começou a representar logo no início da sua carreira literária e a observar dessa etapa com a Segunda Guerra Mundial até ao fim dos dias que lhe foi dado viver. Se uma obra literária se confunde quase por completo, como já referi, com a biografia do autor, a de Natália Correia será, para mim, uma das mais paradigmáticas. Lágrimas, irreverência, disciplina à mesa de escrever e puro prazer na companhia de outros, melancolia juntamente com algazarra, abraços ao Poder seguindo com demolidores murros verbais, o universalismo vivido e pensado e o apego sem apologia à suas ilhas açorianas, eis aqui o retrato de uma escritora e de uma mulher portuguesa em tempos ora sombrios, como diria Hannah Arendt, ora de promessa como diríamos alguns de nós. Natália Correia foi a nossa mulher de letras por excelência, atenta, envolvida, e naturalmente sem rejeitar o mundo da política. Conjugou sempre a reflexão e intervenção, vendo assim o seu mundo como um palco de ação, a poetisa que escrevia para todos sem se preocupar com as modas académicas.
Uma fotobiografia lado a lado com um grande ensaio como este de Natália Correia: Um compromisso com a humanidade constituem duas narrativas complementares: texto e fotos. Enquanto entramos na história visual da autora – nas suas andanças, nas suas companhias sociais e literárias, nos seus templos íntimos das vivências quotidianas – Ângela de Almeida leva-nos pelos cruzamentos mais significativos de Natália e da sua obra. Consegue assim impor uma ordem, uma visão a todo um corpo literário. Os nomes invocados aqui são uma lista vital da nossa literatura destes tempos modernos e pós-modernos. Os passos mais arrojados desta narrativa, que se mantém equilibrada entre a linguagem do afeto e a da historiadora de ideias, foi o começo da recuperação da obra de Natália Correia não só como escritora oriunda dos Açores mas, ainda, da escritora açoriana. Faço uma leitura metafórica de duas fotos numa destas páginas de Ângela de Almeida. Natália a dançar com Sá Carneiro, numa postura respeitosa e meio distante, e outra com Vitorino Nemésio, agora a poetisa a desfazer-se em carinhos, alegrias e aproximações sem complexos. Foram dois poetas portugueses idos e vindos das ilhas açorianas. Se a Pátria ou Mátria foi-nos sempre esta dispersão na Europa continental e no mundo, a força das raízes deixa-nos sempre irrequietos, a sua lava tantas vezes escrita e descrita na obra de ambos, o nosso solo comum e a nossa memória ancestral.
Ângela de Almeida, repetidamente, faz-nos lembrar que para a autora de O Dilúvio e a Pomba, o regresso às origens e tudo quanto esse gesto simboliza foi uma constante, assim como todo um referencial humano e histórico, como na ficção da novela A Madona. A Revolução de 25 de Abril de 1974, nos episódicos delírios e loucuras, colocou Natália ao lado de Nemésio nas movimentações políticas e emotivas quando certos quadrantes das forças vivas do nosso arquipélago foram levados a repensar o futuro relacionamento destas ilhas com o resto do país. Foi a autora do Hino dos Açores e, tal como está retratado e referido neste Retrato, nunca Natália Correia se retraiu publicamente em encontros com esses setores açorianos, ou até como intermediária entre eles e as altas figuras institucionais, como foi o caso de Ramalho Eanes na sua tentativa de conhecer a fundo o que se passava a meio Atlântico. A escritora e a cidadã no seu compromisso com a Humanidade, a Poesia e o Poder, ora se aproximavam, ora poderiam a qualquer momento entrar em conflito aberto. Não será de estranhar que Dórdio Guimarães, seu companheiro de longa data, tenha privilegiado o lugar do nascimento de Natália Correia como ponto referencial da vida da autora, e de um dia ter trazido para cá todo o seu espólio, agora na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e no Museu Carlos Machado. Portugal tem uma memória coletiva muito seletiva, parece, mas essa memória está naturalmente dispersa por todos os recantos do país, e futuras investigações literárias só poderão tornar-se mais ricas e mais significativas e significantes quando estas e outras verdades forem inteiramente, finalmente, reconhecidas e respeitadas.
Acaba de sair uma volumosa biografia de Natália Correia, da autoria de Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar. Só que as obras primeiras de Ângela de Almeida e de Fernando Dacosta mantêm-se sempre como referências indeléveis. De resto, leiam o grande poema “Manhã Cinzenta”, esses versos com que Natália Correia se despediu dos Açores como morada que haveria de ser permanentemente sua – em corpo e alma.
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Ângela de Almeida Natália Correia: um compromisso com a humanidade, Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direção Regional da Cultura, 2019. Texto apresentado nas comemorações do Centenário de Natália Correia, 2023, sob a organização da Câmara Municipal de Ponta Delgada. Parte deste texto foi recuperada de um ensaio que escrevi nos anos 90.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, 31 de março de 2023.
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