sexta-feira, 24 de março de 2023

“Somos uns cínicos e vaidosos – começando por mim” 3/3


Uma Conversa com Joel Neto

       O que motivou esta entrevista inclui, como já referi em edições anteriores, o papel dos escritores, a temática da literatura e sociedade, da Educação, Cultura e Comunicação Social no combate por uma sociedade muito mais justa e igualitária. Nesta terceira e última parte da nossa conversa abordamos outros aspetos da já vasta obra de Joel Neto, sempre numa perspetiva do escritor consagrado e do seu impulso literário de nunca deixar de fora as questões sociais, económicas e culturais que definem o lugar de qualquer cidadão – personagens fictícias que simbolizam, por assim dizer, a condição existencial de cada um na sociedade que é a nossa, várias gerações que refletem a caminhada à procura da sua própria dignidade. “Todos os meus livros – diz-me – são, em larga medida, autoficção. Toda a literatura é, em alguma medida, autoficção. Tudo aquilo em que estou a trabalhar neste momento é, em fortíssima medida, autoficção”. 

     O seu mais recente livro, Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas, recentemente lançado aqui em Ponta Delgada, aborda diretamente todas estas questões sociais e literárias. 

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     O que motivou o teu regresso aos Açores depois de uns bons e criativos anos em Lisboa, deixando uma obra jornalística nalguns dos nossos melhores periódicos nacionais, que aliás manténs a partir da Ilha Terceira?

     Vim para escrever o Arquipélago, sobretudo. Portugal afundava-se na infame crise financeira de 2008 (entre nós, 2011) e de repente eu olhei à volta e perguntei-me três coisas: até quando eu vou conseguir manter, enquanto escritor e jornalista, uma vida que me custa cinco ou seis mil euros por mês?; interessa-me verdadeiramente viver em Lisboa com menos dinheiro, sem gozar a cidade como deve ser, talvez até forçado a mudar-me para algum subúrbio indistinto?; e não será este o momento que eu esperava para escrever o romance que há tanto tempo prometi a mim próprio escrever, e que tenho vindo a substituir por livros mais ou menos dispersos, e sem coerência entre si?

     Foi o que fiz, e valeu a pena. Passei a dedicar-me inteiramente à escrita (embora incluindo crónicas de jornal), e os resultados corresponderam. Os meus livros sucederam-se, os leitores apareceram, a crítica reforçou-se. Entretanto, nunca deixei de ter encomendas dos jornais nacionais e, embora depois lhes tenha juntado alguma rádio (Antena 1), alguma televisão (RTP Açores) e basto podcasting (diferentes projectos), consegui sempre não depender da economia ou da administração pública locais. Nestes onze anos, fiz um ou outro trabalho para a iniciativa privada e (que me lembre) um trabalho para a Região, mas felizmente mantive sempre o grosso da minha subsistência dependente do mercado nacional. Isso deu-me muita liberdade, inclusive de intervenção e pensamento. E, como se tal não bastasse, a minha vida pessoal também deu um salto quântico: casei-me com a Marta, a mulher mais incrível que alguma vez conheci – uma terceirense das Fontinhas, imagina, da tua freguesia –, e os dois fomos, no último Outono, pais de um bebé bonito e saudável.

     É um milagre, tudo isto. Um milagre que devo em primeiro lugar a esta paisagem. E não penso voltar a partir. Sou muito feliz na Terceira, a cultivar o meu jardim, a escrever os meus livros e a cuidar da minha família. Só não me esqueço é que uns metros acima vivem dezenas de pessoas na pobreza extrema. E que uns metros abaixo vivem não dezenas, mas centenas de pessoas na indigência absoluta. Tenho uma vantagem: sou da Terra Chã e, aliás, nasci numa família de classe média-baixa que, com o passar das décadas, ainda empobreceu. Conheço entre os vizinhos, até entre familiares, diferentes graus de pobreza, e que em vários casos ultrapassam os limites da indignidade. Não posso ser indiferente. Não o conseguiria, mesmo que tentasse.

     O que distingue a tua geração literária nos Açores? Sentes que há continuidade com os da minha idade? Queres citar alguns nomes que são referências para ti?

 

Não cito nomes da minha geração. Nós somos peixes grandes porque vivemos num lago muito pequenino; se nos mudássemos para um lago grande, a nossa pequenez tornava-se logo muito evidente. Portanto, temos todo o interesse em acompanharmo-nos uns aos outros, mas não devemos ser mais do que vagas coordenadas uns dos outros. As nossas referências têm de ser os grandes escritores da história da humanidade. Os clássicos fundadores. Os grandes narradores. Os homens de coragem. Salman Rushdie acaba de levar 20 facadas e de perder um olho por escrever um livro inofensivo, ser alvo de uma fatwa e, ao fim de uma década a fugir, ter decidido viver livremente em Nova Iorque, sem seguranças e sem medo. Já nós nem contra as injustiças de um sistema político e social cujos resultados são estes levantamos a nossa voz – para não arranjarmos inimigos, para não perdemos uma homenagem, para não ficarmos sem um subsídio. 


     Portanto, o que distingue a minha geração, do ponto de vista literário, não sei exactamente. Não sou crítico, e ademais sou um leitor anárquico. As sistematizações que faço são em favor do meu trabalho, que é o da ficção, o da insanidade. Se há um padrão que encontro, é esse. Os escritores açorianos da tua geração resistiram a uma ditadura, embora de forma desigual, e depois empenharam-se em erguer todo um edifício temático, melódico e até lexical de que, no fundo, resultou (em parte) a própria consolidação da autonomia, da qual eles foram ao mesmo tempo bardos e compositores. Disso somos todos herdeiros, com certeza: desse universo de que Antero é o avô, Nemésio é o pai, o João é o filho pródigo (etecetera). De resto, somos uns sobreviventes cínicos e vaidosos – a começar por mim.

     Há espaço no teu pensar e escrita para algum otimismo quanto ao rumo da sociedade açoriana? A nossa comunicação social está a desenvolver o seu papel quanto à discussão cívica sobre estes problemas que te preocupam a ti e a muitos outros?

      Por definição, a comunicação social é sempre resultado da sociedade para que comunica. Com a sociedade depauperada que temos, não podíamos ter melhor comunicação social. Em muitos aspectos, a nossa comunicação social é até melhor do que merecemos. Mas só agora, ao fim de muito esforço, começa a despertar para esta urgência.

     Esperança, tenho. Se não, não intervinha – escrevia os meus livros e marimbava-me para o resto. Mas, neste momento, vivemos uma autêntica alucinação colectiva. Ao fim de 47 anos de autonomia, e com os índices de desenvolvimento humano que conseguimos com os milhares e milhares de milhões de euros que a Europa nos deu, a única coisa que nos ocorre fazer é exigir o reforço dos poderes autonómicos. Eu acho que não estamos bons da cabeça.

       A autoficção, termo muito em voga nos últimos anos e premiado o ano passado com o Nobel atribuído à obra de Annie Ernaux, diz-te alguma coisa? Que romances teus, se alguns, colocarias dentro desta classificação crítica e temática? 

     Todos os meus livros são, em larga medida, autoficção. Toda a literatura é, em alguma medida, autoficção. Tudo aquilo em que estou a trabalhar neste momento é, em fortíssima medida, autoficção.

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    Joel Neto, Jénifer, a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas, Lisboa, Fundação Francisco Dos Santos, 2023.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 24 de março de 2023.

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