Por certo que Joel Neto, um dos mais distintos escritores e jornalistas açorianos, a residir na sua Ilha Terceira após uma estadia em Lisboa durante mais de vinte anos, não necessita de uma única palavra minha como apresentação nesta entrevista, que mantive com ele por escrito. Conhecido também pelo seu inabalável compromisso com a luta contra a pobreza no nosso arquipélago, acaba de publicar uma novela que aborda de modo artístico toda esta questão dramática entre nós – Jénifer, ou a princesa da França. Aliás, vem num seguimento de quase toda a sua obra, tal como o leitor descobrirá nas palavras que se seguem. O que motivou esta entrevista inclui, pois, o papel dos escritores, da Educação, Cultura e Comunicação Social no combate por uma sociedade muito mais justa e igualitária. Numa segunda e terceira partes desta conversa abordamos outros aspetos da sua já vasta obra, sempre numa perspetiva do escritor consagrado e do seu impulso literário de nunca deixar de fora as questões sociais, económicas e culturais que definem o lugar de qualquer cidadão – personagens fictícias que simbolizam, por assim dizer, a condição existencial de cada um na sociedade que é a nossa, várias gerações que refletem a caminhada à procura da sua própria dignidade. “Todos os meus livros – diz-me no último passo desta entrevista, que será publicado nesta sequência – são, em larga medida, autoficção. Toda a literatura é, em alguma medida, autoficção. Tudo aquilo em que estou a trabalhar neste momento é, em fortíssima medida, autoficção”. Fiquemos por agora nesta primeira parte, um testemunho arrebatador do seu trabalho contra o que considera ser a miserável realidade de se ser pobre nos Açores, de uma vida de indigência, que para outros parece nunca mais ter saída.
O facto do seu presente livro, a ser lançado brevemente também em Ponta Delgada, ter sido publicado pela prestigiada Fundação Francisco Manuel Dos Santos, diz muito. Está integrado numa coleção intitulada “Retratos”, que congrega alguns dos melhores escritores portugueses da atualidade.
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O teu recente e longo ensaio no Expresso sobre a pobreza nos Açores impressionou muitos leitores aqui nas ilhas. Digo “ensaio” porque esse trabalho é algo mais do que um “artigo”. Um reconhecido escritor como tu sente a necessidade de intervir mais na nossa sociedade?
Mais do que a necessidade, sente a obrigação. Ou devia sentir. Como já escrevi noutro espaço, o silêncio é cúmplice, e o escritor nunca é cúmplice. Evidentemente, está no seu direito constitucional, enquanto pessoa, de calar a boca, seja por conveniência pessoal, seja por preguiça, seja por outro motivo qualquer. Não o digo com moralismo: acredito tanto na cidadania passiva como na cidadania activa. Cada um faz o que quer – até a abstenção, para mim, é um exercício democrático tão legítimo como os outros (embora, em escala, seja também um sinal de inércia social). Mas, quando se cala perante a injustiça, um escritor está a demitir-se do papel de escritor. Deixa de ser um escritor.
Eu não vou deixar de ser um escritor perante a realidade da pobreza nos Açores. Os números são tenebrosos. Regularmente ou em permanência, somos a primeira região do país no incesto, no abuso sexual, na violência doméstica, na gravidez na adolescência, nos crimes contra as pessoas e no ritmo de crescimento da criminalidade violenta (71% de crescimento em 2021); somos a primeira região do país no analfabetismo, no insucesso escolar, no abandono escolar precoce (o triplo da média nacional e a maior taxa da Europa) e no défice de consumo cultural; somos a primeira região do país no alcoolismo, na obesidade infantil, na diabetes, no suicídio jovem, na mortalidade infantil, na produção e consumo de drogas sintéticas e, evidentemente, na baixa esperança média de vida; somos a primeira região do país no desemprego, na taxa de pobreza (o dobro da taxa nacional), no risco de pobreza, na desigualdade na distribuição dos rendimentos, na exclusão social e no défice de ascensor social; somos a primeira região do país na dependência do RSI, no assistencialismo e na subsidiodependência em geral; e somos a primeira região do país na taxa de abstenção e no défice de participação cívica das mulheres.
Portanto, chamamos-lhe “pobreza”, mas é muito mais do que isso. É a economia, mas é também a educação, é também a saúde, são também as violências, é também a participação cívica – e cada uma delas nas mais variadas dimensões. Não falo de avaliações subjectivas, nota. Isto não são impressões pessoais minhas: são estatísticas oficiais, coligidas e/ou reflectidas pelo Serviço Regional de Estatística dos Açores, pelo Instituto Nacional de Estatística, pela Pordata, pelo Eurostat, pela OCDE, pelo PNUD. Vêm todos os dias nos jornais, embora durante anos ninguém as tenha ligado ou sistematizado. Portanto, pode dizer-se pelo menos que ainda não conseguimos vencer este paradoxo: à autonomia dos Açores correspondeu tudo menos a autonomia dos açorianos – das pessoas (ou de muitos milhares de pessoas).
Temos a sociedade mais jovem do país como África tem as sociedades mais jovens do planeta. Um em cada quatro dos nossos jovens dos 15 aos 34 anos não trabalha nem estuda. Entretanto, a toxicodependência cresce sem controlo, as violências crescem sem controlo, a corrupção cresce sem controlo. E eu não vou olhar para trás, ao chegar a velho, e dizer de mim mesmo: “Habituaste-te ao conforto material e aos elogios da sociedade do teu tempo, e calaste-te como um rato.” Nem o meu filho recém-nascido vai olhar para mim um dia e dizer: “Calaste-te como um rato.”
Naturalmente, isto tem custos pessoais, sociais, até (eventualmente) económico-financeiros. Tenho sido alvo de telefonemas, insinuações e esforços de “sensibilização”, alguns até cómicos, desde logo porque vêm muitas vezes de gente dita de esquerda – inclusive de autoproclamados herdeiros da Revolução, daqueles que no 25 de Abril sobem ao palco para cantar a Grândola e acender uma velinha “ao Zeca”. Lamentam que, tanto com o ensaio no Expresso como com a publicação de Jénifer,
ou a princesa da França, na colecção Retratos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, eu esteja “a dar uma má imagem dos Açores”. Isto é: como se a imagem dada do arquipélago fosse mais importante do que qualquer esforço de alerta para os (ou socorro aos) que vivem na indigência.
Enfim, é o kitsch de que nos falava Kundera, “a negação absoluta da porcaria, de tudo o que a vida tem de essencialmente inaceitável”. Se ignorarmos a porcaria com toda a força, talvez ela pareça menos verdade. Mas, numa altura em que caminhamos a passos largos para o 50.º aniversário do 25 de Abril, e depois deste para o 50.º aniversário da Autonomia, deixem-me pelo menos perguntar: até onde nos trouxeram a democracia e a autonomia? Até onde nos levaram?
Bom, em muitos aspectos, levaram-nos a um novo lugar. Para muitas pessoas, vive-se muito melhor nos Açores, hoje, do que se vivia em 1974 ou 1976. Só as infra-estruturas já fazem imensa diferença, e não são só elas. Mas, ao mesmo tempo, só alguns têm direito a essa nova vida. Há milhares de famílias para as quais continua a não existir saída. Os Açores são o melhor sítio que conheço para a classe média viver; os ricos, evidentemente, vivem tão bem nos Açores como em qualquer outro lado do mundo; já ser pobre nos Açores é uma fatalidade, uma condição de que simplesmente não se consegue sair. Até porque, ainda por cima, os ciclos políticos são longuíssimos.
A verdade é esta: milhares, dezenas de milhares de crianças, adolescentes e jovens destas ilhas jamais conseguirão suplantar a condição social dos seus pais. Não existe elevador social. E isso é tão mais absurdo quanto há quase 40 anos temos uma torneira de dinheiro europeu a jorrar no quintal. Para quê? Precisamente para desfazer as desigualdades: as desigualdades dos entre os Açores e as restantes portuguesas e europeias (que continuam a agravar-se); e as próprias desigualdades entre açorianos (que, na melhor das hipóteses, estão estagnadas). Há mais de dez anos que escrevo sobre isso, e durante uns bons oito anos ninguém ligou. Entretanto, sinto-me aliviado por o tema estar, finalmente, a entrar na agenda política regional. Tiro o meu chapéu a José Manuel Bolieiro, que fez dele bandeira programática. Mas as palavras são sempre o mais fácil. Falta-nos dar todos os restantes passos.
Ser um democrata e um autonomista também é exigir melhor democracia e melhor autonomia. Nenhuma delas pode resumir-se a uma proclamação constitucional.
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Joel Neto, Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas, Lisboa, Fundação Francisco Manuel Dos Santos, 2023.
BorderCrossings do Açoriano Oriental de 10 de março de 2023.
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