sexta-feira, 3 de março de 2023

Autores Portugueses Dos Séculos XX E XXI Sobre Portugal E A Nossa Identidade

A sombra da História, com os seus mortos e o peso inamovível de séculos, não nos dá escapatória e estará sempre connosco, quer queiramos quer não.

Marcello Duarte Mathias, O Português visto por (alguns) Portugueses


I

     Suponho que Marcello Duarte Mathias não necessita aqui de qualquer apresentação. Trata-se de um dos mais elegantes e proeminentes prosadores e ensaístas portugueses, vem escrevendo desde há muito diários sob o título generalizado em vários volumes de No Devagar Depressa dos Tempos. Portador de uma vastíssima cultura mundial, balançado diplomacia, política e ideologia nos seus vários quadrantes geográficos e nacionais, Portugal é o centro da sua vivência e formação intelectual,  assim como o resto do mundo e as suas infindáveis idiossincrasias, pelas quais passou uma vida inteira como diplomata-embaixador em alta representação do nosso país, tudo visto e comentado através das artes e das suas histórias. O autor acaba de publicar O Português visto por (alguns) Portugueses: Autores dos séculos XX e XXI, uma coletânea de citações criteriosamente escolhidas em que desde o início do século passado até aos nossos dias esses escritores nossos apontaram tanto a sua (des)inteligência e ideologia quanto à questão de um Portugal sempre meio caído, meio levantado na luz e na escuridão da sua longa História desde os gloriosos Descobrimentos e o desenvolvimento científico que os permitiu, levando consequentemente à primeira globalização até ao presente, um dos mais antigos Estados-Nação europeus, agora mais ou menos diluído por vontade própria juntamente com outras nacionalidades na União Europeia. Para mim é uma leitura corrida mas apaixonante, que começa com o que o autor chama “A Modos de Prefácio”, e segue com essas páginas escolhidas dos muitos reconhecidos nomes na nossa literatura em todos os géneros quando se debruçam sobre a condição lusa a partir da sua fundação até à geração já do pós-25 de Abril. Primeiro aviso: os mais exacerbados nacionalistas devem procurar algum comprimido contra a depressão ou melancolia psiquiátrica (que parece ter levado Antero de Quental ao suicídio), ou mesmo raiva. Para os restantes, entre os quais me quero incluir, o seu –  nosso – patriotismo nunca se deixou ser abalado por palavras que oscilam entre o choro de uns acompanhado do otimismo duradouro na crença de outros, entretanto, de que em tudo isto, encontraremos o caminho certo, por assim dizer, na companhia dos cidadãos que agora têm mais ou menos Bruxelas como capital, mantendo a memória firme de cada território pátrio.

     O próprio texto de abertura de Marcello Duarte Mathias é talvez o mais equilibrado de todo o livro, a sua leitura atenta é obrigatória antes de seguirmos para outras páginas, que podem ser lidas em sequência ou aleatoriamente. Num dado passo, ele próprio afirma que não concorda com algumas citações aqui incluídas, mas que não poderiam ficar ausentes pela sua acuidade e pertinência. Ensaístas, ficcionistas, poetas, filósofos, historiadores e muitos outros pensadores despejaram periodicamente as suas noções de quem fomos e somos, um sumário sustentado de queixas sobre tudo que é Portugal, quase sempre, num gesto que parece de condescendência, só que elevando quase sempre a força do povo e a sua dignidade, todos desejando o salto em frente, com particular ponto de partida o que a geração dos Vencidos da Vida já clamava no fim do século XIX,  não esquecendo Antero de Quental em As Consequências da Decadência dos Povos Peninsulares. É sempre o grito pelas reformas que nunca aconteceram através dos séculos, é sempre triste a comparação com a Europa central e nortenha à qual nunca chegamos, é sempre a denúncia de sermos quem somos – todos eles chegando à conclusão que apesar de tudo este é o seu país, este é o seu povo, esta é sua língua amada, é sempre a geografia que nos colocou à beira do Atlântico, com Espanha como muro, segundo uma das vozes neste livro, como que a morder os lábios por sermos uma nação independente, que até o galego Francisco Franco, afirma-se ainda num dos textos aqui, equacionava a possibilidade de, pois, uma reintegração nem que fosse à força. Tudo isto pode ser verdade, mas por vezes parecem-me fantasias de intelectuais, alguns deles, fechados numa redoma cujo reflexo só lhes devolve a sua própria inteligência, saber histórico, e sobretudo ideias clara do que deveríamos ter sido, deveríamos ser, mas nunca seremos. Gosto de me lembrar da resposta de um colega americano na Universidade dos Açores quando eu me queixava de qualquer coisa num destes sentidos – It is what it is. Ponto final. Há um certo conforto, creio, nessa aceitação existencial, quase estoica. 

     “O português – escreveu um dia o antropólogo Jorge Dias, e citado aqui citado por Marcello Duarte Mathias – é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso sem ser fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas ferido no seu orgulho pode ser violento e cruel. A religiosidade apresenta o mesmo fundo humano, peculiar ao português. Não tem o carácter abstracto, místico ou trágico próprio da espanhola, mas possui uma forte crença no milagre e nas soluções milagrosas”.

     O impressionismo – informado, por certo – é tanto um modo de crítica e apreciação, como um ato intelectual subjetivo por definição. Faz-nos também repensar e rever a nossa própria ideia de  quem somos, de onde vimos, e nalguns casos formular a ideia de sabermos para onde queremos ir. Só que as palavras que nos são aplicadas poderiam e são aplicáveis à maioria dos povos nossos conhecidos. Quase todos dizem do seu amor a Portugal, e não ignoram que a nossa emigração tem como objetivo primordial um eventual regresso ao que aqui sobressai como uma espelunca, a choldra da Geração de 70, a piolheira de D. Carlos, secundada por um Eça de Queirós, que se queria, relembram outros, mais francês do que português. A maioria dos que nestas páginas escrevem raramente foram emigrantes – como José Rodrigues Miguéis e Jorge de Sena, por exemplo – e tinham apenas Paris como sendo a cidade da Beleza Total, a capital de uma França que nos tentou esmagar em três sucessivas invasões, a matar e a pilhar tudo em frente. Menos o nosso povo a viver na lama dos seus arredores, alguns deles hoje senhores de si, e até de Portugal. Tendo ido para a América californiana como criança e lá formado nos arredores de Los Angeles, não posso levar muito em consideração a obsessão das virtudes de uma vida que Henry David Thoreau descreveu como sendo uma de “desespero tranquilo”. A minha maior felicidade foi regressar ao meu país natal após 27 anos de profunda americanização e felicidade de criança e depois de uma carreira também feliz no ensino oficial da Califórnia durante 14 anos – trazendo muitos dos traços estrangeirados que aqui se olhava de alto para baixo. Los Angeles hoje tem milhares de desabrigados e trabalhadores que não conseguem pagar as rendas ou sequer a alimentação, aliás como em muitas outras cidades do mesmo país. Metade do eleitorado americano é hoje trumpista, foge à sua própria tradição e do suposto Sonho Americano. Portugal? “A nossa – escreve Onésimo Teotónio Almeida em A Obsessão da Portugalidade, e do mesmo modo citado no presente livro – tem 800 anos e, podendo ter sido de outro modo, foi como como foi e tomámos-lhe o gosto...”

II

O Português visto por (alguns) Portugueses é-me um livro muito relevante, as sucessivas gerações em busca de outros caminhos, quando subentendem serem esses caminhos “superiores” ao nosso. Só que a História pode ser reinterpretada por todos, mas não refeita. Há quem pense e já o escreveu que “o mundo que o português criou” noutros continentes e ilhas de nada vale. Uma vez mais, o impressionismo, mesmo entre os que se dizem “cientistas” nas humanidades, não deixa de ser isso mesmo. De qualquer modo, um país sem críticos sérios e formados, por vários meios, homens e mulheres que pensam o seu destino, valeria ainda menos. “Por outro lado – escreve o selecionador e coordenador destes textos –, as opções ideológicas, embora não representando necessariamente um dado prioritário, afiguram-se por vezes determinantes na visão com que cada qual encara a realidade nacional. E é natural que assim seja: na verdade, somos ideólogos sem o saber, ou querer reconhecê-lo, sendo a História a cada momento o pano de fundo onde nos inscrevemos, tantas vezes, aliás, à revelia da nossa própria vontade”.

     Como sou e escrevo para um jornal açoriano foi-me grato ler algumas das nossas mais distintas vozes literárias, que não foram ignoradas, como é habitual desde sempre. Estão neste livro todos por ordem alfabética, e é Fernando Aires que abre este rol de citações, o autor de alguns dos melhores diários alguma vez escritos em Portugal – ilha e continente o todo do seu imaginário português. Estão ainda Vitorino Nemésio e, como já referi, Onésimo Teotónio Almeida e Augusto de Ataíde. Da imigração lusa na América do Norte, José Rodrigues Miguéis e Jorge de Sena. Viveram longas décadas nesse seu exílio territorial, e sobretudo cultural. Por entre as mais diversas influências recebidas, quer de Sena nas grandes academias do seu país adotado, quer de Miguéis no centro de Manhattan, que alguns pensam o centro do mundo, nunca evitaram que os dois escritores enormes  deixassem de viver Portugal ao longe a cada dia da sua existência. Que força é esta, afinal, que Portugal exerce sobre nós todos? A de um país que já foi tudo e agora é pouco, ou agora o pouco que não (nos) deixa de ser tudo?

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    Marcello Duarte Mathias, O Português visto por (alguns) Portugueses: Autores dos séculos XX e XXI, Lisboa, D. Quixote, LeYa, 2023.

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