sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Romance De Ernesto Rodrigues Entre A Ficção E O Ensaio


O Ocidente é um demónio à solta, que o patriarca de todas as Rússias exorciza, aspergindo água benta. 

Ernesto Rodrigues, Liliputine

I

          Apesar das palavras escolhidas como epígrafe deste texto, não se trata nem do papel da Igreja russa perante a guerra na Ucrânia, e o país invadido a 24 de Fevereiro do ano passado é visto quase ao longe nestas páginas, sem, no entanto, nunca ser esquecido aqui da primeira à última página, é o acontecimento detonador de toda a narrativa. Vivemos os dias de guerra mais perigosos deste século – até ver o que poderá vir de seguida. Mas é só parte do que o autor pretende representar com Liliputine, em termos de arte e de um tema que ensombra todo o nosso mundo, enquanto foi escrito, e agora enquanto o lemos. Isto na nossa língua é, creio, a primeira vez que acontece – uma peça literária mista de fôlego ficcional e ensaístico que nos transporta para todo o século XX, e sobretudo para os dias que vivemos. Escrever com saber histórico, político e literário sobre o fogo cerrado e a morte a cada minuto num país outrora dito de “leste”, que pensávamos longe da nossa própria identidade, é pouco ou nada plausível para a maioria dos nossos escritores. Levou anos antes que a nossa literatura referente à guerra colonial conhecesse alguma aceitação, e, estou em crer, foi pouco notada publicamente. Ernesto Rodrigues tem uma obra avassaladora em quase todos géneros, inclusive inúmeras traduções no nosso país da literatura húngara. Viveu em Budapeste entre 1981-1986, como Leitor e Diretor do Instituto Camões, tendo lá deixado família após o seu regresso a Portugal. Por certo que outros viveram em direto a então Europa de Leste durante os anos soviéticos, conhecem – ou fazem por não conhecer – a realidade a fundo então vivida. Se a guerra na Ucrânia despoletou esta prosa, o romance é muito mais do que isso. É como que uma História política e ideológica nos seus contornos profundamente humanos. Cada ideia sai da memória e vivência das suas personagens, homens e mulheres a tentarem sobreviver em sociedades fechadas e vigiadas, outros a lutar contra o que viria a ser a queda de toda a experiência dita comunista liderada pela Rússia num vasto império de repúblicas e territórios, o amor entre homens e mulheres saltando nacionalidades e línguas para além de tudo o resto que os separava. A Ucrânia é essa miragem tornada realidade, anunciada ou ensaiada em Budapeste em 1956 – o início do que o autor chama de “romance-reportagem” – e repetido tudo em 1968 em Praga. Por detrás da atual violência bárbara de mísseis e demais armas, já estava a violência ideológica de toda uma experiência humana que agora é vista pela sua tremenda crueldade, em que os fingidos fins justificavam todos os meios.

     Liliputine vem na tradição da sátira de As Viagens de Lilliput de Jonathan Swift, dando lugar desde então a toda uma literatura em várias línguas denominada precisamente lilliputiana, aqui um gigante dando lugar a uma personagem nossa conhecida por vários meios e “feitos”, sempre recordada  sem ser necessário mencioná-la. O romance junta portugueses, russos, checos, alemães, húngaros, e ainda alguns outros, empresários, espiões, poetas, em espaços simultaneamente distantes e comuns tanto na humanidade dos seus relacionamentos, como na perfídia das suas traições. A estrutura do romance é como que uma sala com várias televisões, cada uma ligada a geografias longínquas, as sobrepostas cidades e datas entre o passado e o presente, mas tudo e todos interligados pelo seu destino durante e depois da URSS, a intimidade de homens e mulheres por entre a imparável luta na defesa ou subversão, também escondida e silenciosa, entre indivíduos e grupos, uma espécie de xadrez humano que o leitor tem de desvendar. Trata-se, na minha leitura, de outro regresso ao chamado “romance de ideias”, sem nunca rejeitar o protocolo, por assim dizer, da ficção modernista, ou pós-modernista, a visão teórica da literatura que a maior das vezes pretende o revisionismo histórico, particularmente quando dá a voz aos que raramente a tiveram, a história tendo quase sempre sido escrita pelos vencedores. Estão todos aqui num enlace amoroso, intelectual e necessariamente político, os seus segredos e separações vindos agora à luz do dia, saídos do labirinto secreto em que muitos viveram durante quase todo o século passado, sempre no medo, raramente temperado por qualquer esperança ou crença nesse caminho anunciado para a escuridão da atualidade. 

   

Neste vaivém de tempo e incidentes marcantes proliferam os nomes de personagens apanhadas pela história ideológica europeia – simultaneamente ameaçadora e prometedora de sociedades que haviam saído de um século de morte e miséria. Todo este mosaico de formas e cores contrastantes está a ser contada em 2022 por Magda Baptista em viagem de descoberta nos países que estão nas fronteiras no agora martirizado campo de batalha que é a Ucrânia, a síntese que resulta da perpétua tentação totalitária, vítima do “homem novo” que regressou à caverna. Magda é formada em Estudos Europeus, aparece na sequência de familiares portugueses seus que tudo provocaram nas suas andanças, como um José de Arimateia e um João Baptista. Magda tem muito mais a dizer inesperadamente, sabe muito mais, do que os muitos comentadores mundiais que se repetem uns aos outros na nossa comunicação social e por vias internacionais sem, ao que parece, entenderem algo mais do que um leitor sério de jornais ou telespetador de inteligência razoável. Uma vez mais, a arte literária rebusca os “factos” e destinos de certas vidas, dando-lhe a alma que falta a qualquer monografia, extensa ou não, sobre a complexidade dos impulsos que levam à degradação da nossa própria humanidade. Esqueçam a noção de universalidade que temos, por hábito académico e literário, fazer crer que o mundo é um Todo igual no seu sofrimento ou ideia de bem estar. Poderá ser que cada ser humano decide o caminho a percorrer, autor do seu destino. O contrário poderá ser o mais acertado. Somos apanhados, como nesta prosa singular de Ernesto Rodrigues, pelo sangue que se junta ao amor na teia da História, limitamo-nos a reagir às circunstâncias do nosso tempo e consciência, ou ausência dela. A ficção está sempre, necessariamente, entre a verdade e a mentira. Todos deixam rastos das suas lutas e conspirações nos impérios caídos e que se querem ressuscitar.

     “O filho – diz o narrador/a no encerramento do romance-reportagem, a propósito das consequências após décadas da saída do frio ideológico – não tem história. Era mais um alegado órfão que os acontecimentos de 1956 enviavam para a salvífica Moscovo. Outros vieram para Ocidente. O pai não precisava de se assumir, se o recomendava a um pupilo do KGB; diferente seria se o deixasse em Budapeste. Educado no luxo de certos pioneiros, e no luxo continuando, faria o que lhe exigissem. Transformaram-no em sósia de quem reaparece agora nos ecrãs, agradecendo a quem salvou de atentado. Jura que um rigoroso inquérito irá até ao fim, para punir restos nazis de terra vizinha infiltrados no país. Sobe nas sondagens. Rebentam manifestações de apoio em todo o país. Uma vingança pessoal arquitectada tem estes efeitos, e será devastadora para os nossos tempos”.

     Liliputine é ainda um romance de frases lapidares, as que o poeta que também é Ernesto Rodrigues deixa cair no meio da maior confusão entre as origens e afazeres pessoais ou ideológicos de todas as figuras tiradas de biografias, conhecimentos pessoais, ou reinventadas nesta narrativa. Descodificar o que nos vai sendo apresentado, representado neste romance, é de igual modo uma aventura para qualquer leitor determinado a chegar ao prazer de um fim que se vai manifestando mais claro a cada passo. Ernesto Rodrigues já tinha demonstrado esta capacidade de procurar saídas de outros labirintos muito mais perto de nós, a loucura lusa fechada num pequeno retângulo terrestre, ou a ser palco de outras movimentações e tragédias nacionais e internacionais, como em Passos Perdidos (2014), A Terceira Margem (2021), Uma Bondade Perfeita (2016), sendo esta uma lista demasiado parcial da sua obra de ficção. 

II

     A capa de Liliputine é uma fotografia a preto e branco do que me parece ser uma cena surrealista da primeira ou segunda grande guerra mundial na Europa. Um soldado rodeado de cidadãos sobreviventes mata ferozmente um animal-monstro, ao fundo um prédio sombreado mas aparentemente resistente. A metáfora perfeita da continuidade da irracionalidade violenta que tem sido a História desde tempos imemoriais. A nossa geração julgava-se livre de tudo isto, mesmo enquanto casa adentro e na última década do século XX o genocídio era ainda tentado numa outra Europa que de novo se desorientava. Por toda a parte, a violência e desconcerto era e é diária, em guerras supostamente “regionais” das quais apenas nos chegam ecos e imagens a cores nas nossas salas mais ou menos tranquilas. É pouco habitual os escritores e outros intelectuais escreverem obras de qualquer género durante o tempo de um conflito armado, dramático, assassino de corpo e alma, aqui ao lado. As palavras inerentemente controversas vêm depois, as acusações e a redenção imaginária viram literatura para que as gerações vindouras não cometam os mesmos erros, evitem o inferno. Só que, como disse há poucos meses Olena Zelenska: Enquanto no nosso país contamos os cadáveres, aqui tão perto contam os cêntimos nas vossas economias como resultado do inferno que os loucos de toda a parte reacenderam. O não-esquecimento pode não valer tanto assim. Mas o contrário condena-nos eternamente.

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     Ernesto Rodrigues, Liliputine, Lisboa, Guerra & Paz, 2023.

Publicado no BorderCrossings do Açoriano Oriental, 24 de fevereiro de 2023.

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