sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O Salto Literário De Carlo Matos Na Literatura Luso-Americana

Disse a todos que eu era gay, o que não é exatamente verdade mas também não é mentira. Carlo Matos, As Malcriadas or Names We Inherit 

O romance As Malcriadas or Names We Inherit/As Malcriadas ou Nomes que Herdamos, do luso-americano Carlo Matos (com raízes muito próximas ali nos Mosteiros), é, simplesmente dito, magnífico. Consegue a um tempo ser um grande contributo para a nossa Tradição literária na América do Norte, enquanto quebra genialmente com o mesmo cânone já existente. São poucos os escritores com esta audácia e saber. Conhecia a sua inquietante obra poética desde há algum tempo quando recenseei A School For Fishermen (2009), uma eloquente homenagem aos seus antepassados açorianos, à vida no mar atlântico e em terra americana. Viriam alguns outros depois, mas o seu título de poesia mais recente já traz um sinal também denotador do seu desassossego interior, da sua capacidade de se situar sem apologia em liberdade nos seus mundos americanos, We Prefer the Damned/Preferimos os Condenados (2021). Cada autor, sabemos, quando fiel a si próprio, carrega várias geografias humanas dentro de si, reais ou imaginadas, e no livro aqui em foco vamos da sua cidade natal, Fall River (São Miguel a ocidente) a Chicago (onde vive há anos e é, para além de coisas mais, professor universitário), com ainda uma breve passagem por Merced, um outro poiso de muitos ilhéus nossos na Califórnia. Vamos ao que nos interessa nesta sua mais recente ficção. A primeira linha na nota biográfica não pede licença a ninguém: “Carlo Matos é um bissexual+, que tem onze livros publicados...” Dirão alguns outros, e vai daí? Tudo e nada – seguido de humor, ironia e paixão. Um grande romance, responderei ainda, em abono da sua grandeza artística, do seu assumir nestas páginas que uma comunidade pode professar as suas crenças e conforme os seus preconceitos, mas não se livra de ser espelhada na sua diversidade humana por uma geração que se apresenta por inteiro no seu próprio modo de vida enquanto reclama para si o lugar firme de pertença, sem qualificativos nem reticências. O presente liberto do autor conjugasse com a memória e o respeito pelo passado dos seus, e de outros mais. Se isto não seria novidade noutras culturas mais abertas, é-o sim, entre nós, por falsas razões religiosas, e muito particularmente entre a nossa gente na lUSAlândia, essas ilhas rodeadas de América por todos os lados, nas palavras de Onésimo T. Almeida, que cristalizaram em muito, mesmo na ebulição social e cultural americana, no muito que levaram consigo destas ilhas em décadas passadas. Não se trata aqui de qualquer transgressão provocadora. Trata-se, isso sim, de ficção que transmite a verdade, ou da “verdade” que, pelo menos entre nós, sempre transmitiu ficção.

  As Malcriadas or Names We Inherit é esse grande romance na sua forma e conteúdo da literatura americana contemporânea, e também da nossa literatura em inglês, essa que reconstrói, testemunha, o como sobrevivemos ao longo dos tempos numa terra estranha, mas já onde não somos estranhos em qualquer quadrante da vida na grande sociedade a oeste. Não conhecer este facto diminui a nossa própria História insularizada. A língua não é a pátria de ninguém, absorvemos meios de comunicação de qualquer território do nosso coração, somos nós que definimos as nossas nacionalidades, que poderão ser oficializadas ou não. Ninguém melhor do que a escritora luso-americana Amy Sayre Baptista descreveu o essencial deste romance por ela prefaciado. “Somos apresentados a um rol de personagens, quatro desajustados, cujas estórias são uma espécie de saudade aguda, nostálgica mas nunca muito indulgente. Manny, Em, Gomez e Gilga são como que uma tapeçaria e Matos um mestre tecelão”. Seguimos as suas vidas num tempo em que quase todas as perguntas não tinham respostas definitivas, a procura desenfreada de uma vida satisfatória num mosaico humano sempre em construção, cada um a tentar dar um passo para além da mera sobrevivência e na busca de uma vida com sentido, nunca negando o peso do passado descentrado de pais e avós que trabalhavam como escravos na indústria têxtil da Nova Inglaterra, o proletariado fechado nos seus bairros, mantendo as suas linguagens de origem, insistindo em permanecer fiéis a tudo o que em séculos de existência a meio mar foi e é o seu legado.

As Malcriadas é título do riso para uma banda de música dos anos do liceu em Fall River, uma homenagem cómica aos nomes desagradáveis com que nos classificavam os nossos pais, e outros, aqui traduzido pelo autor com bonomia, saudade e leveza: brats, traquinas que quebram as regras, ou algo semelhante. De casa em casa, de escola em escola, de amor em amor, sem que o género tenha qualquer significado de isolamento, o leitor vai rindo com as peripécias exigidas na luta de luso-americanos e americanas pela sua vida radicalmente distante de tudo o que esperavam as suas famílias, acompanha os momentos de choro e abandono entre o grupo de amigos que partem em direções diferentes na continuidade da descoberta da sua própria dignidade por entre verdades e mentiras nas suas relações. Eles somos nós, o inevitável corte radical sem o esquecimento dos que lhes deram vida e incutiram os valores que julgavam permitir paz e tranquilidade na efervescência social e cultural da América em movimento imparável. São eles o outro retrato das novas gerações que deixaram as fábricas da escravidão, para uma vida que se supõe maior nas academias, nas artes, no desporto. Carlo Matos, este autor empático e capaz de, uma vez mais, urdir e exprimir entre mãos e mente a prosa que faz de cada linha um poema do quotidiano, a musicalidade heteronímica que existe em cada um de nós, as imediações e o mundo em geral que ora nos aprisiona, ora nos liberta. Quando o romance vai chegando ao fim, após amores e desamores, ganhos e perdas, o narrador sente a solidão de uma modernidade que parece enlouquecida.
 
 “O grande poder da minha avó, no entanto, não a pode proteger de Alzeimer’s, tenho sido forçado – diz o narrador nas últimas páginas deste romance – a ver a sua grande luminosidade a escurecer durante duas décadas. Eu deveria ter estipulado certas condições, deveria ter escrito uma nota em letras minúsculas. Ela já não me conhece, o que é uma crueldade selvagem. E isso nem é o pior tudo. O pior de tudo foi a leviandade com que entrei na minha vida adulta, foi tão fácil para mim seguir em frente, desviar-me da mulher que me amou acima de tudo. Eu não sei que magia a mantém agarrada a este mundo – a minha ou a dela – mas espero que esta condenação termine em pouco, mesmo que a sua morte me encha de mais medo e angústia do que senti como criança...”
 
 O que é ou não estritamente autobiográfico neste romance pouco interessa. O seu riso e choro (nunca alheios a nenhum de nós em qualquer tempo e lugar) tem a particularidade, a originalidade, de misturar instantes eufóricos e melancólicos, num quotidiano que mais parece uma roleta russa mental, levando o leitor de um passo a outro numa narrativa em tom e andamento absolutamente diferenciados. Entre homens e mulheres não há amarras aqui, o que contradiz toda tradição das origens mais remotas e da hipocrisia que ainda pesa nas sociedades que se dizem modernas, tolerantes, conhecedoras da natureza humana e da ciência que tudo diz e contradiz. Não é um romance, digamos, libertário, As Malcriadas or Names We Inherit é muito mais uma denúncia de como as suas personagens se ocupam do que é insignificante até que a curva na estrada lhes mostre o que perderam em si próprios e perante os outros. O género da comédia literária do autor – acompanhamos a juventude e depois o evoluir da idade e das coisas – insinua em si mesmo, ou di-lo como na citação que fiz aqui, que há mais vida e morte à nossa espera, os inevitáveis ganhos e perdas de tudo e todos. No contexto da literatura luso-americana, esta é uma obra singular, alegremente atrevida, o que faltava contar sobre toda uma geração que entrou na meia idade tão perplexa como no início da rejeição e aceitação de quem é, de quem somos, e como.

Carlo Matos não só escreve com desusada originalidade, como, pelo que sei dele das notas biográficas que acompanham os seus livros, tem uma vida, como já referi, que vai desde ser professor universitário ao desporto nas mais perigosas formas – pugilista, esgrima, e do nada menos perigoso roller-skattering, especialmente quando exercido por mulheres em corridas loucas em volta de uma apertada pista, tudo requerendo, suponho, muito cuidado com a pele, cabeça, e o coração. Tudo isto está também presente As Malcriadas or Names We Inherit, em atos de comédia pura, mas por vezes a escorrer sangue real ou emotivo. Aliás, como na sua brava narrativa. Há momentos cómicos quando dizem que ele ou ela “é dos nossos”, querendo dizer luso ou açor-descendentes, sempre nomes conhecidos mas não etnicamente descodificados. A brincadeira chega à muito famosa escritora de romances cor-de-rosa, Danielle Steel, que a “lenda” diz ter raízes na Ribeira Grande. Noutras ocasiões não têm a certeza, vão investigar, e nós rimos com eles, com o que pode ser uma futilidade de alguma (escondida) importância identitária. 

 Eis a imagem de um grande escritor, em muito virada ao contrário para quem ainda pensa que a vida é uma camisa de forças. Que alívio. Que liberdade. Que palavras luminosas em forma de prosa ou poesia.

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Carlo Matos, As Malcriadas or Names We Inherit, New Meridian Arts, 2022. Todas as traduções aqui são da minha responsabilidade.

BorderCrossings do Açoriano Oriental publicado a 17 de fevereiro de 2023.

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