quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Muito Mais Do Que A Poesia Do Quotidiano






Escrever é/fazer existir o que antes não existia/como este fósforo maduro que agora seguro na mão/vai ser chama/já é cinza.

             João Luís Barreto Guimarães, Aberto Todos os Dias
     Por certo que o poeta João Luís Barreto Guimarães tem sido publicamente muito elogiado nestas semanas recentes após ter recebido o Prémio Pessoa, 2022. Já era muito conhecido e apreciado no nosso país pelos mais atentos à grande literatura. A sua poesia tem sido também muito comentada ao longo dos anos pela crítica internacional, após traduções em várias línguas, alguns desses volumes premiados em Portugal, assim como nos Estados Unidos, Macedónia e Itália. Retiro toda esta informação da sua bibliografia de capa no seu mais recente livro, Aberto Todos Os Dias. A verdade é que na azáfama do dia e da leitura generalizada alguns de nós não chegámos às suas páginas até à chamada de atenção na nossa imprensa nacional logo após esta outra e recente distinção. Tratei de imediato colocar na minha estante alguns dos seus livros (começou a publicar em 1989 com Há Violinos na Tribo), os que encontrei nalgumas livrarias, quando já muitos outros os procuravam: O Tempo Avança por Sílabas (antologia de  2019), Nómada e Movimento. Entraram bem na minha casa, pela originalidade das suas linguagens e pela forma continuada que cada poema toma, quase sem que o leitor se dê conta tanto do simbolismo que cada objeto, personagem ou olhar lhe provoca, a narrativa dos dias e dos momentos vividos e lembrados, os significados de uma vida que permanecem na memória e consciência de quem procura perceber um pouco mais o que à primeira vista parece apenas um incidente ou encontro banal, tudo o que geralmente estaria condenado ao esquecimento. A poesia de Aberto Todos Os Dias é como que um eloquente silêncio, um murmúrio que nunca mais nos deixa na liberdade de não pensar, na liberdade de simplesmente existir num vaivém de rotina e gestos que, só aparentemente, nada influem na nossa solidão, ou na companhia de outros seres significantes. Cada poema é de uma ironia a um tempo leve e dilacerante quando nos damos conta de que a nossa vida é, quase no seu todo, feita de nada mais do que estar tentativamente em paz enquanto seguramos a sanidade possível no tremor e incertezas constantes a cada minuto que passa. Uma mão cheia de coisa à espera de/acontecer. O copo/quase a/partir./O prazo quase a acabar…
      A sequência de Aberto Todos Os Dias vem nomeada em secções (locus amaoenus, beatus ille, tempus fugit, carpe diem) num andamento que nos relembra muito do que olhamos e não vemos, muito do que pensamos mas não retemos, muito da vida quotidiana entre os que nos rodeiam no trabalho ou no lazer momentâneo, até à viagem realizada ou imaginada com os chamamentos a outros lugares, a outros poetas, a outras vivências que diferem só nos seus fusos horários pelo mundo fora, cada geografia quase sempre ocupada num vazio próprio. João Luís Barreto Guimarães é considerado pela crítica como “poeta do quotidiano”, poeta das supostas pequenas coisas que nos seus versos tomam o brilho que não havíamos notado antes, e será também um poeta de grande alcance perante a História que todos vivemos, expressa ora numa metáfora, ora na menção de um único e reconhecido nome. A clareza das suas palavras fazem-nos lembrar um Robert Frost ante a beleza sem idade de uma árvore florida, ou um T. S. Eliot na sua poesia pós-terra erma, quando este vai ao encontro da sua própria pessoa e condição de vida. Barreto Guimarães é médico, mas só raramente o leitor se dá conta desse facto nesta poesia. O que acontece é que o mais ínfimo pormenor da sua observação de cada instante acaba num verso, uma vez mais, que nos transmite tudo o que passa a ser essencial à nossa empatia ou, pelo contrário, ao estranhamento e distanciamento perante o retrato pintado em palavras. Sair de si e caminhar para o mundo, ir ao encontro do outro nas mais diversas circunstâncias, vividas ou imaginadas, fazer que cada palavra se encaixe num canto poético, numa forma de balada filosófica que vale a pena memorizar e citar quando queremos saber um pouco mais de nós próprios.
 
     Se amanhã
     vires um miúdo na calçada portuguesa
     (bicos dos pés no calcário
     tentando evitar 
     basalto)
     imponde-se o desafio de não
     poder pisar cor preta
     já tens aí o
    poema.

     
João Luís Barreto Guimarães - Imagem retirada da internet
O uso de parêntesis é parte de um recurso técnico, muito comum nos poemas de João Luís Barreto Guimarães, como aliás já outros o tinham notado. É um modo, afirmam outros críticos, de um aparte que explica ou contextualiza um verso ou outro, ou o poema no seu todo. É ainda a habilidade literária de tornar cada verso uma narrativa, na recriação de uma “personagem”, esse pormenor que nos permite outra visualização, o tal olhar o momento agora poetizado. Aberto Todos Os Dias abre com uma retoma do livro Movimento que antecede a obra presente: A margem do rio desenha-se/com luzes que bruxuleiam/quando caminhas contigo: é inquietação/o que sentes?/Vê se mudas isso em ti. É um outro modo de dizer ao leitor que a narrativa tem outros inícios, que a continuidade não  muda de forma de livro para livro, reforça a continuidade temática do autor: os dias e noites vividas, os instantes que marcam, o chamamento constante a outros poetas nacionais e estrangeiros, em menção direta, nas epígrafes, em alusões-outras – a luz lançada sobre as palavras. A clareza desta poesia esconde em si toda a complexidade interior sentida, percebida pelo poeta. É certo que outros escritores portugueses contemporâneos também cultivaram a arte de dizer o que para a maioria de nós tinha ficado esquecido, silenciado, o poder das pequenas coisas, dos momentos diários, o significado profundo que os nossos mais chegados têm para o nosso modo de ser e estar. Insista-se na literatura não só como um jogo de palavras e invenção pura, mas ainda como o espelho simultaneamente claro, distorcido, múltiplo, a imagem devolvida a qualquer ser humano no mais distante e escondido recôndito. A urbanidade humanizada tanto vê a criança a brincar aos pulos, como reconhece a dor e a alegria da  sobrevivência dos marginalizados e oprimidos entre nós. 
     “O papel da poesia – disse João Luís Barreto Guimarães a Valdemar Cruz numa entrevista ao Expresso pouco depois de receber o Prémio Pessoa – também é escrever sobre tantas coisas que nos passam ao lado ou que preferimos olhar para o lado quando acontecem. É o problema da indiferença e dos interesses que respondem mais às necessidades de quem dirige se manter naquela posição e enganar o povo com pão e circo. O papel da poesia é também escrever sobre o feio, sobre o horrível. A poesia não tem que ser bonita. Tem que ser harmónica, no sentido em que cada palavra transporta em si uma imagem e um som. O poema vai repintar uma certa realidade. Mas o poema pode terminar de uma forma disfórica. Pode ser feio. Pode ser uma cacofonia que custe dizer. Acho muito importante o poeta contemporâneo não ser autista da sua própria sociedade e achar que a poesia é meramente um divertimento, ou uma arte de salão, uma arte burguesa, que incumpre a sua função política, social e de resistência...”.
     Para mim, é bom ler isto, vindo de quem vem. Passada a euforia da poesia do Nada, arrogantemente académica, indecifrável na sua oca pretensiosidade, que mais parecia concorrer com o preenchimento de palavras cruzadas no jornal, sinalizando nada mais do que informação enciclopédica. Eis um regresso da arte, nas palavras acima citadas, também como resistência à desorientação dos diversos poderes que comandam as nossas sociedades, que se querem abertas, democráticas, decentes. A arte não tem de ser, assim mesmo, panfleto ideológico. Tem de ver o mosaico humano no seu todo, apontando o desvio arbitrário de cada quadro. A literatura contém em si o riso e o choro – a humanidade na sua contingência, a luz em “tempos escuros”, parafraseando a grande pensadora política e cultural que foi  Hannah Arendt. Um professor meu dizia-nos numa faculdade americana: não há nada de desprezível em gostarmos de uma sinfonia de Beethoven e de uma canção dos Beatles. Só que temos de saber decifrar a diferença entre uma e outra composição,  tudo no seu contexto próprio. Como na arte literária.
     _____
João Luís Barreto Guimarães, Aberto Todos Os Dias, Lisboa Quetzal, 2023. 
A entrevista aqui citada vem na Revista do Expresso, intitulada “A caneta ou o bisturi/Prémio Pessoa   2022”, na edição de 30 de Dezembro, 2022, e conduzida por Valdemar Cruz, com fotos de Rui Duarte Silva.

BorderCrossings publicado no Açoriano Oriental e Diário Insular.
     


Sem comentários:

Enviar um comentário