sábado, 4 de fevereiro de 2023

Viagem Ao Centro Da Loucura

A minha grande biblioteca são os meus antepassados. Passeio por eles, estante a estante. Cheiram a pó, estátuas perfiladas.

Djaimilia Pereira de Almeida, Ferry


I

     Ferry é o novo romance de Djaimilia Pereira de Almeida, recentemente publicado, e que, como muita da obra sua, tem recebido toda a atenção da crítica mais séria no nosso país. A escritora portuguesa de raízes angolanas tem trazido à nossa ficção as personagens que representam a vida quotidiana nas margens da sociedade, as suas vidas um misto de inteligência e desnorte, a vida em queda perpétua nas ruas de Lisboa, e a memória firme de um passado que pode ser em África ou nos miseráveis bairros citadinos à beira do Tejo. Não deverá ser surpresa alguma esta renovação da nossa literatura, a sociedade portuguesa é agora humanamente muito mais rica, em vários sentidos, pela chegada e permanência dos que connosco partilham uma longa história em terras outrora distantes na nossa imaginação. A autora veio para Portugal com três anos de idade, e as suas geografias de afetos tanto nascem dessas outras terras como imaginários, como pela experiência vivida dentro e nos arredores da nossa capital, nunca deixando fora do seu centro temático a condição social dos seres reinventados em que etnia ou simples má sorte de outros são a um tempo o seu castigo e a força da sua sobrevivência em becos sujos e casas a cair, mas mantendo a dignidade de se estar vivo e numa misteriosa paz com todos os outros. Poucas representações na nossa literatura serão tão pertinentes como espelho coletivo do nosso tempo e lugar. A ficção de uma doutorada em teoria da literatura não deve ser fácil, a segmentação de saberes raramente resulta em tal poder artístico. Lembro-me de T. S. Eliot, o teórico da noção de cultura múltipla no seu contexto labiríntico, pessoal e coletivo, da sua poética da terra erma enquanto em Londres via a humanidade a arrastar-se na famosa ponte sobre o rio Tâmisa. Numa entrevista ao Expresso a propósito deste seu novo livro, Djaimilia falou nos momentos de “insolência” que a levava a contrariar as vontades corretas da sociedade, da sua “insolência” quando de manhã fuma uns cigarros e escrevia. Ainda bem. A arte literária, imagino eu, nasce precisamente nesses momentos, atrevidos e rebeldes, o subconsciente a pedir libertação através do discurso livre, eventualmente chegando a outros pela página imprimida. Insolência, coragem a mestria na manipulação de palavras e linguagens – o mistério da escrita espelhadora da condição de cada um e de todos nós.

     

Djaimilia Pereira de Almeida - foto tirada da internet
Ferry corta, mas nunca totalmente, com a sua obra anterior, mesmo considerando um outro livro seu escrito em co-autoria com Humberto Brito, Regras de isolamento (2020), publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O ter saído de Lisboa para a periferia durante a pandemia que ainda nos condiciona, certos de que o regresso à cidade da sua vida tornara-se impossível, a  expulsão de mão dada dos nativos no outro extremo da sorte de forasteiros vindos de toda a parte cheios de dinheiro para a compra do que restava. Aliás, Ferry mergulha metaforicamente numa Lisboa que supostamente sofreu um grande incêndio que tudo levava consigo, safando-se em fome os cães deixados vadios em Monsanto pelos seus donos marginalizados. A memória metafórica de uma cidade caída e a arder em Setecentos. Vera e o seu marido Albano atravessam o Tejo idos para a Margem Sul, com ela num estado de loucura sem razão aparente, sem nada para além de uma mochila – e de um amor que os segura juntos durante anos na clínica em que ela é internada, com o seu companheiro a residir a seu lado, cuidando do jardim e horta como moeda de troca – e a cada momento da sua amada. Li este romance com alguma resistência devido a circunstâncias pessoais que não devem vir para estas linhas. Não se trata de um romance autobiográfico, longe disso, creio. Só que na obra desta autora nada faz cair o espírito humano, nada destrói o amor, mesmo que o fim adivinhado nos queira fazer pensar o contrário. A vida de Vera está a ser contada por notas retidas na mente ou em papéis desconexos, a voz tanto é de uma mente assaltada, como muda para a terceira pessoa, sendo incerto para o leitor quem fala em intermitentes passos narrativos, como podendo ser o marido a seu lado, ou um parente que permanece um observador à distância. Vera fala constantemente na “bactéria” que destruiu a cidade, a sua redenção é saber que está viva, mesmo sem sentido, que o seu homem nunca a abandona, e durante essa travessia num além indefinido, a obsessão de uma filha chamada Margarida, que nunca existiu mas sempre imaginada em várias etapas da sua vida, inclusive a formação académica sonhada pela mãe. Fazer existir num livro aberto tudo o que o leitor sabe sair de uma mente disfuncional e de um coração que não dá tréguas à solidão na companhia do homem que ama e lhe ampara em todos os cuidados diários até ao fim, é um genial jogo linguístico de acesso vedado a muitos escritores, a não ser um raro autor como William Faulkner, o  d’O Som e a Fúria. Eis um retorno vindo do Nada, após uma vida salva só pelo amor entre um homem e uma mulher.

     “Para salvar Vera, havia que matar Vera. Cuidar dela, mas o que fora cuidar senão matar nela a pessoa que queria destruir? Vera morrera para Vera nascer e também Albano morrera da vida que lhe tinha dado. Ensinara-a a não ter medo de si mesma, levara-a a conhecer o que ela tinha de  terrível e ensinara-a a encontrar graça no horror. Ajudara-a a entender que a guerra que carregava também era o lugar da sua fantasia e deixara a outra Vera dentro da gruta, despida, acorrentada, quando, por fim, cortou a garganta aos monstros que a tinham sujeitado. Albano navegara por águas brumosas, vira peixes com barbas malévolas e olhos mortos. Atravessara florestas delicadas onde  todos os animais escondiam venenos atrás das caras amigáveis. Dera com nevões, vulcões, promontórios onde a solidão se encontrava a sós…”.

     

Quem são os monstros e os peixes com barbas malévolas, as bactérias que destroem as cidades, os navegantes a acenar num rio sobre cujas águas um barco os leva para outras margens da vida e da morte? Ferry tanto contém várias vozes, que poderão ser as de Vera, ou de outros, narrativas em itálico que demarcam a lucidez da loucura, a loucura da lucidez. A luz que projeta a nossa pessoa é a mesma que, numa outra espécie de aviso ao que pensamos ter por certezas existenciais, lança a nossa sombra distorcida. Na entrevista a Bernardo Mendonça no Expresso, que já mencionei aqui, Djaimilia Pereira de Almeida fala em direto sobre o que a levou a escrever um romance sobre a complexidade deste tema. À pergunta quis questionar os limites do amor, da doença mental, o lugar entre a realidade e o sonho? “Queria – disse a autora – falar de um modo profundo sobre o que se perde e ganha na relação entre duas pessoas. O que se diz e o que não se diz, o género de abismo particular que só se conhece numa relação duradoura, e o género de redenção que só se encontra numa relação dessa natureza.” A redenção de que ela fala não sei se na realidade alguma chega. O que acontece em Ferry, que raramente poderá acontecer em vidas em que a realidade se sobrepõe irremediavelmente ao sonho, é a ausência total do remorso, mesmo que Vera tente dizer com alguma insistência , ou talvez pense num relâmpago de descanso mental, que o marido não deveria perder a sua vida normalizada para suster nela alguma força interior até ao sempre esperado mas improvável regresso à luz do dia e ao calor da noite.

II 

     Ler Ferry, como também referi de início, é experimentar um corte na obra da autora, mas sem nunca deixarmos de lembrar o que chamarei de continuidade quanto à invenção e reinvenção das personagens que povoam as suas páginas de outros romances seus. A loucura é de outra natureza, bem mais abrangente, a impiedosa sociedade que atira para a miséria, pisa e repisa as vítimas de circunstâncias históricas ou de puro castigo pela classe social em que nasceu, cor da sua pele, etnia ou nacionalidade. Num dado passo da mesma entrevista a autora afirma sem rodeios: “Não tenho raiva. E, no entanto, quando me lembro do meu avô que era servente de pedreiro num estaleiro qualquer em Lisboa, penso que não tenho feito outra coisa senão vingá-lo neste caminho… Sentir que tenho o direito de acordar de manhã e escrever, pode ser uma forma de vingar a minha gente.”

     Esta outra parte da sua obra inclui Esse Cabelo, Luanda, Lisboa, Paraíso e Três Histórias de Esquecimento, entre outros títulos da sua ficção. Da loucura de Ferry ao castigo de vidas em luta por uma pequena refeição e pelo respeito que a sociedade lhes retira – e que a grande literatura lhes devolve.

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     Djaimilia Pereira de Almeida, Ferry, Relógio de Água, Lisboa, 2022. Publicado no BorderCrossings do Açoriano Oriental, 3 de fevereiro de 2023

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