sábado, 28 de janeiro de 2023

Conversa Com Henrique Levy Sobre A Literatura Nos Açores: A Propósito Do Prémio Natália Correia, 2022

Recebeste o Prémio Natália Correia 2022 numa sessão da Câmara Municipal de Ponta Delgada pelo teu romance Vinte e Sete Cartas de Artemísia no passado dia 16 de Dezembro. Li o teu discurso de agradecimento a todos os que te são significantes num percurso de uma já densa obra, inclusive a influência que a proeminente poeta e escritora açoriana exerceu sobre a tua formação literária. Pode falar mais um pouco do que sentiu no momento em que o prémio foi oficializado?

     Foi a poesia de Natália Correia que, ao longo da vida, me lançou num determinado universo literário, gravando no meu espírito um constante incêndio a contribuir para a formação da minha personalidade e expressão poética. Por esta razão, sinto-me honrado pela distinção atribuída ao romance Vinte e Sete Cartas de Artemísia. O prémio com que a Câmara Municipal de Ponta Delgada me honrou será mais um estímulo para continuar a estudar e a divulgar personalidades e autores açorianos.

     Momento antes da Cerimónia formal da entrega do Prémio Natália Correia, informaram-me da impossibilidade do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada, CMPD, estar presente e que a Câmara havia dispensado a comparênciados seus convidados oficiais, da comunicação social e até mesmo do fotografo da Câmara. Esta atitude não me surpreendeu. Anteriormente, havia recebido um correio electrónico da CMPD, no sentido de encontrar uma data e hora para se proceder à Cerimónia de entrega do Prémio, com o seguinte teor: Devido ao facto de haver uma agenda muito preenchida, e termos conseguido esse furo, solicito que nesse dia faça uma pequena excepção, visto a cerimónia em si também ser rápida. Perante a minha indisponibilidade, por razões profissionais, em aceitar a data e a hora sugeridas pela CMPD, para a entrega do Prémio, foi esta a resposta que obtive: Mediante a vossa indisponibilidade em estar presente durante o horário de funcionamento do município na hora indicada, informa-se que não haverá lugar à cerimónia simbólica e pública de entrega do prémio da II edição do Prémio Natália Correia.

     Estranhei o facto de a CMPD assumir que a Cerimónia de entrega do Prémio Natália Correia se realizaria num furo e propor que esta fosse rápida. Num posterior correio electrónico, após agendamento da Cerimónia para o dia 16 de dezembro, às 14h, a CMPD pedia-me que enviasse o nome e as respetivas moradas electrónicas dos meus convidados. Acontece que a CMPD, sem qualquer explicação, censurou dois nomes da minha lista de convidados. Não tendo a CMPD enviado convites, à Dra. Maria José Lemos Duarte, ex-presidente da CMPD e ao Professor Onésimo Teotónio de Almeida, reconhecida personalidade da cultura açoriana, tendo presidido à Comissão de Honra da Candidatura Azores 2027.

     No dia 16 de dezembro, a poucos minutos do início da Cerimónia, fui informado que o Sr. Presidente da CMPD não estaria presente e que o protocolo da CMPD teria desistido dos convidados oficiais e de contactar a comunicação social. Não me intimidei. Percebi que estava nas minhas mãos levar dignidade àquele momento evocativo da açoriana Natália Correia, a maior poetiza da Língua Portuguesa, de todos os tempos. 

     A inexplicável atitude da CMPD, levou-me a pensar na eventualidade da obra premiada Vinte e Sete Cartas de Artemísia haver cumprido a sua missão, por denunciar um certo sistema político e a misoginia que ainda hoje nos é imposta por valores arcaicos da sociedade patriarcal a que me tenho oposto, durante toda a vida, e denunciado em obras literárias e na minha intervenção pública como cidadão. Estou convencido de que só quando houver igualdade de género e total respeito pelo feminino poderemos, todos juntos, ajudar a construir uma sociedade mais harmoniosa, justa e pacífica. 

     Afinal, a relevância que júri atribuiu a este romance pretende ser uma homenagem a todas as mulheres insulares que, não conformadas com a noite imposta por uma sociedade, patriarcal e misógina, decidiram acender luzes sem atentarem em sombras ou nas linhas das mãos, enfrentando a difícil fisionomia dos regimes que as vexaram e ostracizaram. Todas essas mulheres tiveram a inteligência e a coragem de impor ternura a um mundo inóspito e cruel, onde ainda hoje é difícil viver no feminino. 

     Dizes que encontraste nos Açores juntamente com Luís Levy a geografia da vossa felicidade. Andaste muito pelo mundo. Como é que estas ilhas conquistaram dois homens tão, digamos, universalizados?

Vivemos no lugar mais resguardado da ilha de São Miguel. O meu quotidiano é presenciado por um vulcão e pelo luxuriante jardim que um grande amor soube plantar e cuidar. São três as entradas de mar que nos aproximam da coragem das gentes marítimas desta ilha com quem aprendemos a não perder tempo com prólogos, quando a identificação e o respeito por este povo se estruturam no sentimento profundo do poeta e do homem que, seduzido por uma cultura ímpar, pela devoção dos açorianos ao Divino Espírito Santo e por estas ilhas terem sido berço dos maiores escritores de Língua Portuguesa, teve a coragem de concretizar desejos pretéritos, deixando a vida mundana de uma capital europeia, para se fixar, após um périplo por quatro continentes,neste inspirador e acolhedor arquipélago do Atlântico. 

     Sigo a tua obra poética, ficcional e ensaística desde estes teus mais recentes anos açorianos. Não vou canibalizar aqui nenhum texto meu. Só te pergunto como é que por entre essa escrita contínua entre nós dedicas muitas páginas de ficção na criação de personagens femininas, assim como na recuperação de nomes supremos de outras mulheres açorianas, que para nós permaneciam no limbo do esquecimento?

     Por ser um agente forte de identificação pessoal e social, a divulgação da Cultura contribui para uma sociedade mais justa e igualitária. Acredito que é através da ação de difusão cultural que se permite a integração de segmentos sociais e das diferentes gerações. A identidade cultural de um povo constrói a consciência e a memória desse mesmo povo. Um dos principais objetivos dos governos devia centrar-se na democratização da cultura, aumentando o acesso aos bens culturais e possibilitando aos cidadãos a possibilidade de desenvolver o seu próprio modo de ser e participar na comunidade onde estão inseridos. Em sentido lato, podemos definir Cultura como o estudo das obras das sociedades humanas – uma epistemologia que se propõe analisar o comportamento humano, sendo, para mim, difícil afastá-la da definição de Antropologia.

Quando desembarquei na vida cultural açoriana, deparei-me com a pouca visibilidade de obras de autoria feminina. Durante dois anos, fiz uma aturada investigação, tentando perceber a razão que levou a serem ocultados importantes vultos femininos que contribuíram e contribuem para engrandecer a vida cultural do arquipélago. Nessa investigação deparei-me com um importante poema épico: A Sibylla - Versos Philosophicos composto por 1250 versos em que a autora, a jorgense Marianna Belmira de Andrade, responsabiliza a instituição monárquica, a Igreja Católica e a sociedade patriarcal pelo atraso do país. Como não encontrei nenhuma editora interessada em publicar esse magnifico livro, cuja primeira edição data de 1884, propus à Publiçor a criação de uma editora dedicada exclusivamente à poesia. Assim, surgiu a editora N9na Poesia, de que sou coordenador. A partir dai, os Açores, a sua História e a sua Cultura passaram a ocupar uma proeminente importância na minha vida literária. Com isto, não quero, de forma alguma, por em causa o notável e meritório trabalho desenvolvido por todos os agentes culturais da Região. É de salientar o esforço de autores, editores, livrarias, municípios e dos vários Governos da Região em proveito da difusão da cultura/literatura dos Açores.

     Como vês a nossa “histórica” ausência literária no resto do país, muito particularmente a ausência maioria dos escritores e escritoras que teimam em residir nestas ilhas?

O prémio com que a CMPD me honrou foi mais um estímulo para continuar a estudar e a divulgar autores açorianos vítimas do ostracismo imposto pela República temerosa que a grandeza e dignidade da Literatura Açoriana mitiguem e ofusquem o cânone literário imposto pelos interesses económicos dos grandes grupos editoriais e pela censura constante às vozes provenientes destas inspiradoras ilhas atlânticas. Não posso esquecer que muitos poetas, nascidos, ou adotados por estas ilhas, têm permanecido sós, ocultos e incompreendidos. Como que oxidados pela crítica literária de uma república continental que tem ignorado, desprezado e omitido o importante contributo dos Açores para a Literatura nacional e europeia.

Parecendo incapaz de captar, compreender e assimilar a delicada, original e singular voz da Literatura Açoriana, a maioria dos críticos, das academias e da comunicação especializada, do nosso país, tende a encontrar beleza estética em caminhos sem ilusão, ignorando autores e obras do nosso arquipélago. Muitas vezes, são os próprios açorianos que não valorizam as capacidades e a excelência dos seus autores, socorrendo-se de gente de fora que nada de positivo e inovador acrescentam à nossa produção literária e à sua crítica. 

O tempo e a História vão encarregar-se de demonstrar que o lugar das rosas é nas bandeiras hasteadas junto ao mar e não na vigência de uma vida breve, onde, decepadas, deixam tombar as pétalas murchas no perigo da terra escura. 

     Para além da limitada compensação financeira que um prémio literário confere a um escritor, que outro impacto tem ou poderá ter em obras futuras numa região que quase não dá, ou faz que não dá, pelos seus escritores?

     Não foi, e não será pelo valor financeiro, deste ou de outros prémios literários, que os autores se submetem ao escrutínio de um júri. Os valores imateriais associados à atribuição do galardão constituem-se, esses sim, como os elementos que motivam os autores a candidatar-se e não a dimensão material do prémio.

Os prémios literários premeiam obras e os seus autores, mas são essencialmente uma iniciativa que visa a divulgação da entidade que os promove. Ponta Delgada, com o patrocínio da Câmara Municipal, tem vindo a dedicar algum investimento na difusão da literatura. Devo lembrar que, antes mesmo da criação do Prémio Literário Natália Correia pela anterior Presidente da Câmara, a gestão de José Manuel Bolieiro e Maria José Duarte colocaram o município e, direi mesmo, a Região, no mapa cultural nacional.

O atual elenco camarário, pelo contrário, tem dado bastas provas de estar voltado de costas para a cultura em todas as suas dimensões, não só está a desperdiçar a sua herança, como desbarata oportunidades como a solenidade e mediatismo que a atribuição do Prémio Natália Correia lhes podia conferir. Outros exemplos poderiam ser aduzidos, mas, por não lhes conhecer todos os contornos, fico-me apenas por referir esta oportunidade perdida pelo Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada e da sua equipa. 

Para finalizar, lembro que as personalidades que atualmente gerem os destinos de Ponta Delgada, cidade e concelho, têm apenas uma importância temporal muito reduzida, pelo contrário, a literatura, por ser o registo da memória de um povo, perpetua-se no tempo, mostrando ao mundo a dignidade do povo açoriano.

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Henrique Levy, Vinte e Sete Cartas de Artemísia, Vencedor do Prémio Literário Natália Correia, Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, 2022. 

       



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