Ver através da imaginação ou rever através da memória é o destino da escrita… Certamente porque uma memória das origens nos faz ver toda a vida passada sob a forma elementar da sombra e da luz, do dia e da noite.
Annie Ernaux, O Acontecimento
O termo autoficção, ou ainda mais ficção autobiográfica, nunca teve grande aceitação entre nós, mas o recente romance Misericórdia, de Lídia Jorge, está a ter uma aclamação generalizada pouco habitual na literatura portuguesa contemporânea. Assumidamente dando voz a factos, pessoas, e naturalmente à imaginação da sua narradora, a grande escritora demarca para si – e para outros – um espaço artístico de uma grandeza literária que sempre marcou a literatura nas mais diversas línguas. Gabriel Garcia Márquez disse um dia que tinha sido surpreendido pela crítica que denominava um romance como Cem Anos de Solidão como sendo “realismo mágico”, que ainda encurrala muitos dos escritores latino-americanos – para o desgosto de muitos deles. A crítica académica quer sempre as coisas arrumadinhas numa gaveta teórica para lhe facilitar o ensino e a esporádica escrita. O Prémio Nobel colombiano insistia sempre que abordava a sua obra como sendo um ato jornalístico, relatando o que ele havia testemunhado em cidades e aldeias do seu país, lugares onde crenças e factos se misturavam com a maior naturalidade, as estórias fantásticas que se viviam e contavam. Tal como na América Latina, a nossa cultura, quando encarada sem complexos urbanos, também me diria uma reconhecida escritora luso-americana, oferece todo um misticismo que raramente serve de fundo na busca ou na reprodução literária de personagens muito mais complexas dos que, em grande parte, povoam as páginas da nossa escrita criativa. João de Melo é uma notável exceção a partir do seu romance maior, O Meu Mundo É Não Deste Reino, inicialmente pouco entendido. Seja como for, a literatura notável do nosso tempo nunca poderá ser categorizada por uma qualquer escola teórica, a diversidade literária livra-se de academismos ou de insistências em certas linguagens críticas, que são mais camisas de força intelectuais do que discursos ensaísticos que alguns conseguem tornar arte pela sua originalidade de abordagens, pela sua empatia perante o texto analisado. Penso no falecido Edmund Wilson, americano, e em James Wood, britânico, este que continua a surpreender numa das melhores publicações semanais também de Nova Iorque.
A francesa Annie Ernaux recebeu o ano passado o Prémio Nobel por uma obra que está algures entre a ficção e a crónica, numa basta sucessão de relatos puros em vários volumes que recuperam os incidentes e as realidades que lhe moldaram a vida, a memória, creio que foi ela própria a dizê-lo, por entre a verdade vivida e a interpretação imaginativa na nebulosidade natural do tempo que ensombra o passado. Não conhecia a sua obra em direto, mas a distinção que um Nobel confere a qualquer autor (bem sei que isso é discutível pelos grandes escritores que nunca o venceram) fez-me querer abrir um dos seus livros quase ao acaso, ficando a saber pela publicidade agora estampada em cada um deles, que desde há muito foi premiada ao mais alto nível em vários países.
O Acontecimento foi editado no nosso país recentemente (assim como outros dos seus romances ou novelas) pelos Livros do Brasil, e em boa hora, para uma outra lição à nossa cada vez mais reduzida área da crítica literária em geral. O tempo da sua trama recua a 1963 (o livro foi publicado em Paris em 2000 pela Éditions Gallimard, o que já diz muito), uma subida da autora ao calvário quando decide por um aborto nesse tempo de ilegalidade, a clandestinidade da sua decisão e a procura determinada mas perigosa de todo o processo levado a cabo por homens e mulheres escondidos/as, os médicos institucionais sempre em recusa ou numa atuação plena de dúvidas e quebra de todas as regras em vigor nessa altura. Por certo que a autora sabia que a sua prosa levantaria todo o tipo de questões muito para além da arte da sua linguagem de tom, uma vez mais, quase jornalístico ou como que entradas de um diário que recua e avança em toda uma ambiência pouco solidária e empática. Indissociáveis a coragem e arte que nos espelham em breves páginas um tempo que cada leitor lembra a seu modo e consoante a sua própria experiência de vida, ou, dependendo da sua idade, é levado a imaginar. Não há aqui, repita-se, separação entre autora e narradora, poderia ser um ensaio numa das grandes revistas em qualquer língua, só que é um dos mais arrojados livros de uma escritora que viveu e vive a Europa em períodos muito distintos. O Acontecimento faz prever muito do que levaria as respetivas sociedade ocidentais à revolta da contracultura, que já na altura estava a anunciar-se de várias formas na rua e nos gestos artísticos de toda a ordem. A grandeza desta prosa ligeira mas a cada passo significante para quem simpatiza ou então contesta a ética que leva ao desfecho deste livro é a arte que reflete ou faz refletir os nossos mais profundos sentimentos, tudo o que condiciona a nossa opção ideológica, a nossa mundividência em qualquer comunidade que necessariamente segue uma Tradição, obedece na generalidade aos vários poderes institucionais. O indivíduo, por outras palavras, na luta a qualquer preço social pela sua libertação pessoal num labirinto totalizante que raramente permite essa contestação. Nada de extraordinário nos nossos dias. Resta o poder das palavras na reconstrução de uma só vida, o poder da eloquência libertária, quer aceitemos ou não.
“Ia – diz a autora/narradora sobre o seu estado de espírito durante a sua odisseia de contornos múltiplos fora de vistas – para a biblioteca, trabalhar na dissertação abandonada desde meados de dezembro. Demorava muito tempo a ler, tinha a sensação de estar a descodificar. O tema da minha dissertação – a mulher no surrealismo – mostrava-se luminoso no seu conjunto, mas não conseguia transformar essa visão em ideias, exprimir através de um discurso continuado o que me era percetível sob a forma de uma imagem sonhada: sem contornos e, no entanto, de uma realidade irrefutável, até mais real do que os estudantes debruçados sobre os alfarrábios, e o porteiro gordo a rondar perto das raparigas que procuravam cotas no ficheiro. Sentia-me inebriada com uma inteligência sem palavras”.
Annie Ernaux, relembra-nos constantemente, é a filha de um casal sem formação académica, pequenos comerciantes numa aldeia distante algures no interior de França. Toda a bagagem da tradição multisecular em direção abertamente conflituosa com as mais enraizadas crenças religiosas e sociais, só, agora, na cidade das luzes, rodeada de muitos colegas ou vizinhos que lhe são indiferentes na sua caminhada para um futuro sem as amarras da sociedade. Note-se, na citação que faço, do “porteiro gordo a rondar perto das raparigas”, a clara imagem só aparentemente inocente. As mulheres na arte surrealista, literatura ou outra, que por certo já se confrontavam, pelas suas próprias palavras ou gestos-outros, com a representação criada por outros autores, com os ditames coletivos do seu tempo e lugar. Descodificar um texto poderá ser uma mera ação intelectual, mas o que a autora sente será a sua decisão de partir da literatura para a sua condição pessoal, o seu íntimo desejo de se livrar de todas as vontades alheias e firmemente tornadas lei imposta em situações de que visavam submissão absoluta. Nada de novo nesta rebeldia literária, toda a grande literatura é esse contradizer, em forma de denúncia ou da simples vontade de fazer arte da agonia secreta das suas “personagens”, a determinação de cortar com todos os medos, fazer do passado um palco trágico sem que consiga cancelar a noção de liberdade e poder de inverter o que se tem por “destino”.
Suponho que para alguns – ou muitos leitores – estas não sejam páginas de prazer confortável. O Acontecimento é um livro arrojado ainda por outras razões, particularmente no que concerne o que incontáveis mulheres em toda a tarde davam como conquistas seguras em muito do que diz respeito às suas opções de vida. A sua autora está a ser avidamente lida nos EUA, sem qualquer surpresa para alguns de nós, dadas as recentes decisões do Supremo Tribunal naquele país. A revista The New Yorker, na sua edição de 14 de Novembro de 2022, publica o que eles dizem ser ficção de Annie Ernaux, “Returns”, logo após o anúncio do referido Prémio Nobel. Na ilustração da página de abertura desta prosa, da autoria de Sébastien Plassard, um fundo de azul e verde melancólicos, que poderiam representar um lugar em qualquer parte do mundo, e numa porta aberta de desenho tradicional o perfil de uma mulher de braços meio abertos, meio caídos, de vestido amarelo comprido e um tapete da mesma cor à sua frente, penteado clássico, e sem qualquer expressão definível. O contrário das mulheres nos quadros de Paula Rego, mas significando o mesmo desespero, todas as mulheres vindas de um passado solitário e no meio de nada que ainda as atormenta? A cor deslavada de muitas das nossas vidas? Poderá ser. Ou, tal como qualquer grande peça literária, cada leitor, cada apreciador, terá a sua própria reação ao que está a ser transmitido, sugerido – a fealdade humana dando lugar à beleza da palavra,
______
Annie Ernaux, O Acontecimento, tradução de Maria Etelvina Santos, Livros do Brasil, Porto Editora, Porto, 2022. Publicado no meu BorderCrossings do Açoriano Oriental, 27 de Janeiro, 2023.
Sem comentários:
Enviar um comentário