sexta-feira, 8 de agosto de 2025

De Artur Veríssimo e da sua obra literária

 


A verdade é que pareciam duas personagens acabadas de sair de uma fita antiga ou de um bailinho de Carnaval.

Artur Veríssimo,

O encantador de viúvas e outras histórias


    Artur Veríssimo é um dos nossos mais refinados humoristas na literatura portuguesa com origem nos Açores. O seu mais recente livro de histórias torna-se um autêntico romance de um tempo e de lugar, neste caso de Angra do Heroísmo e arredores, talvez a sua freguesia de São Mateus ali ao lado, sempre conhecida por ser terra de pescadores, a dois metros da cidade património mas cuja história é igualmente interessante. Permitam-me fazer aqui uma observação que numas ilhas muito sensíveis à imaginada grandeza nunca se desfez a grandeza do coração humano, que por natureza sempre universal para além de tudo o mais. Um parênteses aqui: a crítica séria tem sempre de ir além da conversa de café e dos que pretendem ler e não leem, dos que acham que compreendem sem nada compreender. Só que este texto vai além de mim, muito pelo contrário, vem de um dos nossos melhores escritores de ficção, o inevitável e essencial de qualquer literatura de características muito próprias. O “coração humano” de que falava William Faulkner não tem território demarcado, dá uma volta ao mundo de mãos dadas, quer sejam mutuamente reconhecidas ou não. Harold Bloom dizia que até a crítica literária é “memória”. A grande literatura é mais do que tudo isso. É memória, sim, e muito mais, é o registo artístico da nossa universalidade, o que comungamos com todos os outros. Ler Artur Veríssimo é rir de página a página, é reconhecer a nossa inocência, as nossas virtudes e a nossa maldade. Brinca com os nossos desejos supostamente mais perversos mas demasiado humanos, como acentua a profunda humanidade de outros, homens e mulheres.

    

    O encantador de viúvas e outras histórias é um curto mas grande livro sobre as décadas idas e vividas em tempos que a proibição de sermos inteiramente humanos era a lei dos dias e do regime que nos olhava como suspeitos a partir da nossa nascença. Jovens que se amam às escondidas, viúvas que sentiam a falta do carinho e do amor na cama e fora dela, cada personagem um retrato genial de cada um de nós. A sátira nestas páginas é implacável, a ironia e o humor fazem-me lembrar o grande escritor judeu-americano Philip Roth em qualquer um dos seus livros. Interliga a questão da identidade com a humanidade – cada um de nós, necessariamente, obedece à tradição como à sua própria modernidade. Não existem aqui remorsos, só a memória de desejos em tempos idos, só a sociedade sempre hipócrita e santificada. Sexo? Sim. Amor condicionado pelas circunstâncias da traição ou pela natural vivência em solidão. Pela vontade de retribuir o que homens e mulheres de todas idades não tinham porta adentro, ou por jovens a quem negavam o seu direito aos mais naturais desejos e busca de um sentido de vida. Viúvas? Quem não é viúvo da sua própria vida? Artur Veríssimo, pelo nome dos seus protagonistas, revisita uma ilha de silêncios e vida dura. Angra é já hoje uma cidade mítica, mas nunca a sua história tão pacífica como convalescente nas relações humanas. Representa, para além da sua beleza geográfica, a cidade de nós todos, tal como qualquer outra comunidade nossa espalhada no oceano e em vigia constante não só do tempo e dos sismos, mas sobretudo do que ia e vai portas adentro. Estas são as nossas histórias, estas foram as vidas dos nossos progenitores, como serão as nossas de hoje. Uma vez mais: “o coração humano em conflito consigo próprio”.

    

    Saímos todos de um bailinho de Carnaval? Poderá ser uma arte própria da Ilha Terceira, só que toda a vida em toda a parte é um “carnaval”, no “riso” e ainda mais no “choro”. O encantador de viúvas é um livro muito especial, no seu estilo de desprendimento das coisas, na sua linguagem linear, na sua sofisticação de nuances simultaneamente que provocam no leitor tanto o prazer puro da leitura como o levam ao pensamento sobre o passado e o presente. O mundo inteiro é feito de ilhas rodeadas de água ou terra. O mundo inteiro é feito da humanidade a saque na sua privacidade, na sua felicidade ou infelicidade, o mundo inteiro está em busca do seu sentido de vida. O passado poderá não ser conhecido de muitos. A sua existência quotidiana, no entanto, estou em crer, que em nada difere do que esses outros julgam ignorar. O amor e desamor em nada difere do que foi vivido durante a história. Artur Veríssimo sabe disso. Um grande escritor não pode nem deve nunca explicar nada a ninguém. Desenha, tal como um pintor ou um músico, o que a sua sensibilidade sabe ou suspeita sobre a nossa condição. Cada palavra, cada frase, cada parágrafo narrativo insinua o que vai na alma do escritor, e cada um cada tire as suas conclusões ou interpretações. Não cabe ao escritor explicar mais nada. Como que a dizer: é isto que eu vivi, é isto que testemunhei, é disto que me lembro. Uma vez mais: William Faulkner escreveu que “o passado não está morto, nem sequer é passado”. No andamento das suas narrativas Artur Veríssimo, suspeito, sentia ou sabia o mesmo.

Às vezes, – diz o narrador num certo conto deste livro – viajar é apenas isto: fechar os olhos, sentir no rosto a brisa fresca da tarde e ouvir as histórias que o bracel-da-rocha ou a faia-da-terra escondem. E o miradouro do Pelado pode ser então um chilrear de namorados, um barco a remos ainda com o teu lugar vazio ou a última viagem da baleia-azul...”

    Este passo que cito aqui vem no conto “A última viagem” e traz como epígrafe Viagens na minha terra de Almeida Garrett. Artur Veríssimo está em todas as narrativas atento à literatura do seu país, incluindo Carlos de Oliveira, Camões e Gil Vicente, e ainda a escritores estrangeiros, em que o Marquês de Sade, entre outros, têm presença nas suas epígrafes ou citações. A erudição literária torna-se uma referecência constante na sua escrita. Eis aqui um escritor açoriano que nunca se limita à bruma e às pedras negras das ilhas açorianas. O que cada vez mais se torna cansativo, repetitivo e de todo desnecessário. Por outro lado, presta, sempre, homenagem a outros escritores nossos, como Álamo Oliveira, que tem tudo a ver ao longe com estas páginas. Tudo isto acresce à grandeza literária de Artur Veríssimo. Já tudo isto tinha ele manifestado em romances anteriores como Uma Pedra no Sapato, Rapariga Celta Sentada Num Javali, e ainda A Felicidade das Coisas Imperfeitas.

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Artur Veríssimo, O encantador de viúvas e outras histórias, Edições Húmus, Vila Nova Nova de Famalicão, 2025.


BorderCrossings do Açoriano Oriental, 8 de agosto de 2025


quinta-feira, 31 de julho de 2025

Vamberto Freitas: A Voz Crítica que Liga os Açores ao Mundo Literário

     
Manuel Leal
O nome de Vamberto Freitas é hoje incontornável no panorama literário português, mas a sua relevância ultrapassa os círculos académicos ou universitários. Em BorderCrossings – Leituras Transatlânticas, série de ensaios agora no seu sétimo volume (Letras Lavadas, 2025), mais do que um crítico, Freitas manifesta-se como um verdadeiro mediador cultural entre o mundo lusófono europeu e a diáspora luso-americana.

A sua escrita, acessível mas exigente em termos intelectuais, constrói pontes entre experiências e tradições que muitos julgariam distantes. Com uma vida dividida entre os Açores e os Estados Unidos, ancorada em afetos familiais, Freitas transforma esta condição de fronteira numa vantagem experiencial, oferecendo leituras que ajudam a compreender identidades em trânsito e formas de pertença múltipla.

Crítico e observador atento, Freitas não se limita à análise de livros. Penetra nos silêncios, nas escolhas estilísticas e nas intenções implícitas da escrita, revelando os significados latentes que escapam à leitura superficial. Como o pintor que trabalha a luz e a sombra, ele lê entrelinhas, com sensibilidade e rigor, explorando a psicologia literária dos autores que comenta.

Há no estilo de Freitas um eco de Norman Holland, figura central na chamada "psicocrítica" nos Estados Unidos que propõe uma abordagem que une a teoria da receção ao pensamento de Freud, argumentando que a experiência estética de uma obra literária envolve um processo dinâmico de projeção e identificação por parte do leitor. Neste contexto, para além das particularidades idiomáticas, o inconsciente molda a leitura. O texto funciona como uma espécie de cognição compartilhada entre autor e leitor.

Na última Feira do Livro de Lisboa, o professor Ernesto Rodrigues, da Universidade de Lisboa, reconheceu Freitas como “o principal crítico literário português depois de João Gaspar Simões” — uma afirmação que confirma a apreciação nem sempre publicada de reconhecidas figuras na literatura diaspórica e do país, como Onésimo Almeida (Brown University), Diniz Borges (California State University, Fresno) e outras. A sua obra, contudo, fala para todos os Açores, na forma como articula o sentido de lugar, a vivência da emigração e a fidelidade a um património multicultural em que se insere.

Formado nos Estados Unidos, na California State University, Fullerton, Freitas regressou ao arquipélago para lecionar na recém-fundada Universidade dos Açores, onde contribuiu para a consolidação do ensino das humanidades. Paralelamente, manteve uma presença ativa na comunicação social, com colunas regulares no Açoriano Oriental. Naquela voz saliente na comunicação social açoriana com eco para além do Arquipélago, ele trata a literatura como espaço de reflexão partilhada sem se expressar como curiosidade académica ou objeto hermético.

Freitas revela uma consciência clara das tensões entre tradição e modernidade, insularidade e abertura, pertença e desenraizamento. Embora não o afirme diretamente, essa vivência crítica entre dois mundos culturais ressoa nos seus textos. A frase de Onésimo Almeida — “sou americano nos Estados Unidos e português em Portugal”, dita a propósito de si próprio — serve aqui como chave interpretativa para compreender o tipo de consciência crítica que também informa o trabalho de Vamberto Freitas. Ele lê o mundo com conhecimento e convicção a partir das margens e das travessias.

Em BorderCrossings – Leituras Transatlânticas, o autor dá continuidade àquela prática de leitura profunda, atravessando paisagens culturais da literatura açoriana, luso-americana e da diáspora em geral. Ao contrário do que James Wood criticou como “realismo histérico” — uma tendência na ficção contemporânea para acumular detalhes banais sem profundidade —, Freitas mantém o foco na dimensão simbólica e psicológica da narrativa com linguagem clara e elegante.


O
seu pensamento crítico não se fecha numa torre de marfim. Pelo contrário, Freitas convida o leitor comum, curioso e reflexivo, a partilhar da sua viagem literária. A sua escrita comunica com naturalidade, sem sacrificar complexidade, e sem se deixar enredar em jargões ou posições ideológicas obscuras. A sua crítica é ao mesmo tempo gesto de leitura, escuta atenta e partilha intelectual. Lê-se não para dominar o texto, mas para acompanhá-lo, acolhê-lo nas entrelinhas e silêncios. Escuta-se não apenas o que é dito, mas o que ecoa no não dito — nas hesitações, nas metáforas, nos desvios. E compartilha-se não um saber fechado, mas um pensamento em trânsito, capaz de se deixar afetar pelo outro.

Nesse tríplice movimento, o ato crítico revela-se como experiência ética: uma forma de estar com o texto, com o autor, e com a comunidade que dele se nutre. Mais do que interpretar, trata-se de dialogar, de construir pontes entre tempos, culturas e linguagens. É nessa tessitura que se afirma o lugar da crítica como espaço de cuidado e de escuta. A reflexão sobre a literatura é, para Freitas, outrossim, um modo de pensar a cultura açoriana contemporânea e o seu lugar no mundo. Nos seus ensaios, reconhece-se a experiência de quem vive entre territórios, mas recusa o desenraizamento de quem abraça a diversidade cultural sem renunciar à identidade binómica que o caracteriza. Neste sentido, a sua obra constitui uma intervenção duradoura no pensamento crítico dos Açores e da lusofonia.

Mais do que interpretar, Vamberto Freitas irradia conteúdos que estimulam o debate e alargam horizontes. Ao fundir literatura, psicologia e identidade, a sua crítica torna-se uma forma de diálogo vivo, uma ponte para o futuro — e um espelho que nos permite ver como leitores, com mais nitidez, a complexidade do que somos na projeção psicanalítica do inconsciente na assinatura estilística do escritor.

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Manuel Leal, In Diário dos Açores, 25 de julho de 2025

Numa outra despedida a Álamo Oliveira

Álamo Oliveira por Rui Melo

    Álamo
Oliveira foi e é um dos nossos maiores escritores portugueses. Vou dar-lhes um exemplo do que me disse há uns anos o Prof. Doutor João Medina da Universidade de Lisboa, ele próprio com um passado africano. Álamo, disse-me ele a propósito do romance Até Hoje (memórias de cão): é o melhor romance, de longe, sobre a guerra colonial portuguesa. Representa pela primeira vez a sexualidade dentro do exército português para além de todas as suas memórias açorianas e depois as memórias na frente de guerra na Guiné-Bissau. Uma outra leitora bem formada de São Paulo leu um poema de Álamo sobre a sua estadia naquela metrópole brasileira: é o melhor poema que li, disse-me ela, sobre a minha cidade. O mesmo acontece com o seu romance Não Gosto de Chocolates, situado na Vale de São Francisco e eventualmente traduzido por Diniz Borges. Uma vez mais, foi o primeiro escritor com o saber e a coragem de introduzir temas, digamos tabus, na literatura dos Açores e da nossa Diáspora. Que lugar ocupa entre nós todos nestas geografias de casa e no exterior? Um lugar cimeiro como poucos outros ocuparam até hoje. A sua grandeza artística generalizada entre a cultura erudita e popular, nestes sentidos muito próprios, não tem, por enquanto, igual entre nós. Uma vez mais, é um dos escritores portugueses maiores que sempre escreveu com a sua experiência de vida açoriana. Ensinou-nos como mais ninguém a verdadeira universalidade da nossa literatura.

    Sim, era um homem e artista de um relativo Renascimento da nossa época. Conheço razoavelmente a dimensão da sua variada obra, incluindo a sua dramaturgia e artes plásticas. Aliás, foi ele desde sempre que desenhou as capas dos meus e de outros livros, e nos anos mais recentes continuou a fazer-me o mesmo, mas agora em colaboração com Rui Melo. Só que pela minha própria formação em história e letras é a sua poesia e prosa que mais me movem e comovem: pela sua extrema habilidade a trabalhar as palavras, cada frase sua uma brilhante metáfora da nossa vida em ilhas e no além-mar, a sua ironia genial denotando o nosso profundo sentido de pertença à nossa terra natal e a revolta ante todas as injustiças e a submissão histórica a estas terras de capitães-generais e donatários tanto à distância, ou já como filhos de casa – com todo o seu egoísmo, corrupção e incapacidade de desenvolver uma região cujas potencialidades nunca foram além de tudo para uns poucos e de nada para a maioria do povo açoriano, ou dos portugueses em geral no seu país triangular desde a Madeira e Continente às ilhas dos vulcões e do medo permanente.

    Toda a sua obra é grande, faz parte do cânone literário português. Os meus dois livros preferidos são Até Hoje (memórias de cão) e Pátio de Alfândega Meia Noite. A luta ingrata em África seguida da corrupção desenfreada que se seguiu à reconstrução de Angra e da restante Ilha Terceira após a grande catástrofe do 1º de Janeiro de 1980. Ficção? Sim. Mas a grande ficção nunca pode deixar de partir e interligar-se com a sociedade em geral. A ganância de uns e o sofrimento da maioria. Quanto à poesia, para mim, é a obra total, cada poema um mundo inteiro em si e a reação de um grande poeta, o seu posicionamento ante o quotidiano vivido sobretudo na ilha, o seu sentimento existencial do momento e a memória do termos sido e quem somos. Um grande poeta é sempre uma voz coletiva para além do jogo de cada palavra ou verso. Álamo Oliveira é singular na poesia e na prosa. Nem sequer menciono aqui os seus ensaios ou estudos sobre outros poetas e escritores, como, por exemplo, Almeida Firmino.

    Quanto ao teatro do Alpendre, sei da originalidade, da sua fundação em Angra do Herpísmo. Vi uma ou duas peças em palco, mas eu vivia nos Estados Unidos e nunca acompanhei o trabalho de que se “via” e “ouvia” à distância. Basta dizer que ultrapassou o digno estatuto de teatro amador para teatro profissional, ou lá perto. Quanto à coleção Gaivota da Direção Regional da Cultura, aqui sim, posso dizer muito mais. Foi a a partir das suas publicações que se deu o primeiro grande fôlego ao livro e aos autores açorianos. Foi a recuperação de escritores de todos os géneros que nos foram recuperados, tanto para a minha própria geração como para os outros mais novos. Juntamente com o então Secretário da Cultura Doutor Reis Leite provocaram um outro renascimento sistematizado na nossa literatura. Sem a Gaivota ainda hoje não teríamos autores que viriam a tornar-se uma referência permanente nas nossas vidas literárias. Angra era então a nossa capital das letras, que depois foi perdendo lugar nesse estatuto por diversas razões e pela lógica de um centralismo literário que se tornaria inevitável pela razão dos números da população em cada ilha, e ainda pelo domínio da Universidade dos Açores no campo das Humanidades. Só que a centralidade da nossa vida literária vai desde a Horta a Angra do Heroísmo. Na literatura não são os números que significam – há a história e as continuidades. Desde o Alpendre à Gaivota, as artes nos Açores não teriam sido possíveis, para além de outras geografias e novas realidades, sejam elas em palco ou editoriais.

    Respeitar um grande autor como Álamo Oliveira, creio eu, passa pela leitura contínua da sua obra. Ele merece os reconhecimentos todos quantos são devidos a quem gravou ou grafou para sempre e com grandiosamente a história do seu povo espalhado por boa parte do mundo, em países que tiveram ou tivemos de reaprender a ser e a estar em línguas e culturas então “estranhas”, toda essa história transfigurada sempre com verdades e prazeres da palavra que a escrita académica nunca poderá conseguir. Estatísticas e história diplomática ou política constituem saberes formalizadas que raramente significam nada mais do que nomes que nos dominaram ao serviço de si próprios e dos seus aliados no Poder. A arte literária vai ao essencial: que sente um indivíduo ou um povo inteiro no quotidiano de luta pela sobrevivência, pela sua dignidade? Que outra forma literária é capaz de denunciar o que numa qualquer comunidade cultiva a raiz do nosso ser, “a seiva da nossa luz” para que a revolta não aconteça, para que a justiça seja feita?

    Eis aqui a grandeza da obra de Álamo Oliveira. As flores na sua morte não bastam. É preciso nunca o esquecer. Álamo adorava o seu Raminho e a sua Angra do Heroísmo. Que a sua figura renasça agora em formas outras. Saberão todos, disso tenho a certeza absoluta, como o lembrar, imaginar e perpetuar a sua memória.

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No BorderCrossing do Açoriano Oriental, 18 de julho de 2025



sexta-feira, 9 de maio de 2025

Jogos de palavras e pós-surrealismo num romance de Luís Rego


Hoje está Lua cheia. Anda daí, vamos até ao ilhéu a nadar. A água deve estar quente!

Luís Rego, O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial


    Primeira confissão. Nunca tinha lido um livro de Luís Rego. Este foi para mim uma descoberta que eu andava à procura sem saber: um romance magnífico nas suas linguagens absolutamente originais, e parecendo que não aborda antigos tema açorianos: a vontade de permanecer na terra natal e de viajar por outros meios e imaginação, a mesma coragem dos que partiram daqui de barco ou avião, sempre de modos inesperados, sempre a desafiar a claustrofobia de uma pequena ilha em busca do inesperado e da sobrevivência. O mar, para nós, já outros o disseram, tanto é clausura como uma estrada de fuga ao cerco e em busca do inesperado, em confrontação ora com a miséria ancestral, ora no tremendo desafio do desconhecido e da prova de coragem braçal ao encontro pacífico com os outros. Só que nestas páginas esses outros são a água de um bravo bravo e inconstante Atlântico e das suas criaturas submersas. A comédia pura juntam-se aqui à seriedade da solitária e luta pela sobrevivência. Muito para além do barco ou do avião a opção nativa é a força dos braços e a emigração, por assim dizer, sempre em volta da ilha, um desafio muito mais corajoso do que a partir para terras longínquas e desconhecidas. Só um publicista profissional tem esta audácia literária, que é juntar a verdade à ficção entre seja o que for, numa tentativa de se fazer acreditar ou tornar plausível mesmo que ele próprio esteja consciente das suas palavras – nem inteiramente convincentes nem inteiramente ficcionais. Isto é ficção num renascimento nada habitual na literatura açoriana. Se o autor, que viveu e exerceu a sua profissão em Lisboa durante anos e resolveu numa determinada altura regressar às suas origens açorianas pouco deverá interessar aos leitores. Que consegue reatar a temática da nossa literatura por meios tão originais, isso sim, é que levará o leitor ao fascínio de virar cada página de um longo romance. Ao contrário do que dizia José Saramago, nunca confundir o autor com a sua personagem ou o seu protagonista. A melhor literatura é feita da imaginação pura, como sabem alguns e confundem uns tantos outros. Se em tempos Luís Rego deu aos braços cansados nas ondas do nosso mar aqui em frente às minhas janelas no Pópulo também não me interessa. Que imagina as fantasias de seres reinventados é o que leva a uma estória de que são são feitas as nossas próprias fantasias – e até desejos de mantermos tudo no segredo íntimo da nossa pessoa.

    Esta é vida de David natural de Vila Franca e cuja saída da sua extrema pobreza são as suas aventuras no mar, começando por ir a nado até ao ilhéu mais ou menos próximo. Eis a vénia à coragem de um açoriano. A chamada elite – provavelmente vinda dos pobres mais pobres embarcados à força em Alcântra nas primeiras caravelas do povoamento – começa por se sentir encomendada, como se sentia e sente ante a pobreza e a coragem sem apologia dos bravos. Eis a continuidade da nossa história, primeiro trágica e eventualmente fundadora de uma nova vida e de uma outra civilização a meio mar. Um gigante polvo, inteligente para além da nossa compreensão, dá-lhe alguns desafios, mas ele nunca tem medo. Luís Rego faz nestas paginas uma outra vénia a alguma literatura açoriana, especificamente ao romance de Carlos Tomé, O Bracinho, também este que versa a rebeldia dos ilhéus ante o poder em terra, e que parecia incontestável. Do mesmo modo, o autor faz eventuais chamamentos ao já mítico romance Moby Dick, de Herman Melville, no qual alguns açorianos, como se sabe, estão representados ostensivamente. Em pouco David, sempre com fome e sem outros horizontes, encontra um amigo local de nome Fernando Jorge, com outros meios de vida e que depressa ajuda com comida e companhia ao seu amigo e vizinho. A história açoriana é feita disto mesmo: solidariedade, desejo de fuga e desejo de nunca deixar o pedaço de terra que ama, e que é na verdade a sua casa, com terramotos e outros castigos pelo meio. Assumir a sorte do mar foi tanto ou mais heróico do que os que partiram para terras de sonho que tanto aguardavam o seu sofrimento como o seu triunfo.

    

    Nadar no mar bravo até à exaustão sem parar em volta de uma ilha é esse outro tipo de “emigração”. A metáfora de Luís Rego introduz-nos a outra maneira de partir e de ficar, apresenta o maior dilema da maioria do nosso povo. Partir em lágrimas, e depois regressar com o sorriso de quem venceu. A eventual morte é apenas um pormenor ditado pelos deuses. Neste romance O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial estamos todos representados em termos artísticos, numa linguagem a um tempo clara e subtil, só como um grande escritor é capaz de realizar. Cómico e trágico, é um romance de toda a nossa história, de nós que olhamos o horizonte com fantasias sem nunca nos darmos conta do desafio que é viver, pobre ou rico, numa terra que tudo nos dá e tudo nos tira, sem aviso e sem piedade.

    Lá David – diz o narrador a meia viagem – contou a história toda. Obviamente, Dona Laura pensou que aquela aventura era um disparate pegado [a volta à ilha sempre a nado], que podia até correr o risco de morrer, desconhecendo que a única coisa que os Pais de David lhe haviam deixado como herança fora a possibilidade de ele morrer um dia mais tarde. Ela sabia que David não tinha que provar nada a ninguém, mas pronto podia de facto emprestar a mala com primeiros-socorros, mas só porque haveria um barco que o iria acompanhar naquela loucura. E David até estava com sorte, porque a Rosa iria ter que voltar à Vila, para dar uma limpeza final à casa, à mata e à piscina, por isso, poderia levar-lhe a mala”.

    O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial é um dos nossos mais singulares romances. Nada e tudo que é a nossa história estão nestas páginas. Nada e tudo torna-se uma representação da nossa vivência nestas ilhas. Nada e todos os nossos sonhos, as nossas fantasias são o tema e as linguagens do nosso ser e estar, já não desterrados mas cidadãos do mundo, hoje ao nosso alcance, ou então a pátria do nosso viver e descanso.

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Luís Rego, O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial, Letras Lavadas, Ponta Delgada, 2025.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 9 de maio de 2025

sexta-feira, 2 de maio de 2025

A voz de Diniz Borges e o nosso destino na América do Norte


Ainda caímos, facilmente, por um elogio gratuito ou uma presença ornamental nas nossas festas.

Diniz Borges, Raízes E Horizontes: Narrativas Da Diáspora Açoriana


    Diniz Borges emigrou para a Califórnia com dez anos de idade, e poucos anos depois já intervinha na vida comunitária de Tulare, no Vale de São Joaquim, que a maioria dos leitores sabem muito bem onde fica, e ainda mais sobre a vida do povo açoriano ligado maioritariamente à agro-pecuária que os nossos antepassados lá tinham desenvolvido a uma escala inigualável no mundo. Sereno e de uma consciência precocemente política e comunitária, Diniz Borges chegaria também em pouco tempo a uma faculdade estadual e depois a outra onde se formaria com um mestrado em estudos de literatura étnica, o mesmo que dizer ao estudo das literaturas dos “outros” que já vinham desde os anos 60 a reformular a ideia de “América”. Radialista num programa por ele fundado, todas a semanas cultivava a cultura portuguesa através da música e da fala sem medo nem tréguas. Quando eu viajava de quando em quando a alta velocidade de Los Angeles para o Vale de São Joaquim, Diniz convidava-me de imediato para me fazer uma entrevista na rádio sobre o estatuto das nossas comunidades, particularmente a sobrevivência da língua portuguesa na imigração. Eu já era professor bilingue no Cerritos High School, e ele pensava que eu teria algo de importante a dizer sobre o Português nos Estados Unidos. Diniz, disse-lhe num desses programas que levantaria alguma celeuma entre certos ouvintes: “caminhamos alegremente para o suicídio linguístico”. Ainda hoje ele fala-me dessas palavras, e no que teria de ouvir dos “patriotas” mais assanhados. Seguiria logo depois com a sua escrita em jornais da nossa imigração e nos Açores, a sua temática uma outra constante: o respeito e a crítica pelas nossas tradições lembradas em festas, na religiosidade de todo um povo ido das ilhas açorianas e de outras geografias de língua portuguesa. Em suma, a destreza da sua palavra abordava o dilema de uma muito antiga comunidade espalhada pela vastidão da Califórnia. Que sim, a Tradição era uma dádiva a que a própria Igreja incentivava em rituais diversos, em festas em prol da coesão de um povo numa sociedade multicultural, mas a nossa sobrevivência requeria algo de muito mais radical e seguro: a nossa integração no resto do território americano em tudo o que nos colocaria num espaço aberto, desde a política à grande e diversa cultura e modo de vida dos que connosco se definiam para além da “saudade que não chora”, como ele intitulava uma notável antologia de poesia açoriana e de luso-descendentes. Hoje, Diniz Borges dirige com saber e rigoroso sentido de missão, como docente e investigador, o Portuguese Beyond Borders Institute que integra a Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno. Posso dizer com segurança que ele neste últimos anos tem feito muitíssimo mais do que eu e alguns colegas fizemos durante tempos passados no mesmo estado. Numa outra palavra, que a Tradição se mantivesse sem nunca ser um entravo à modernidade comunitária que tardava a chegar.

    Raízes E Horizontes: Narrativas Da Diáspora Açoriana vem na sequência de uma substancial e canónica obra jornalística e literária, que inclui inúmeras traduções de autores açorianos e luso-descendentes, todas elas mencionadas nas notas de capa do livro aqui em foco. Estamos ainda e sempre ante a luta pelo respeito e progresso das nossas comunidades. Lembra-nos da nossa longa e persistente caminhada rumo à integração total na sociedade norte-americana na política, nas artes e indústria. São muitos os nomes aqui mencionados, como são as visitas dos nossos políticos e governantes regionais que evidentemente pouco aprenderam sobre a dinâmica em curso dos luso-descendentes. Chegam lá dos Açores e do continente com um discurso que nunca saiu do antigo regime: é a saudade que eles julgam ser a dos nossos imigrantes, a noção mais do que ultrapassada sobre o que é ser-se “açoriano” ou “português”, como Marcelo Rebelo de Sousa a dizer ainda recentemente naquelas paragens que somos caldo verde, futebolistas, e, suponho, comedores de bacalhau, entre outras asneiras como se ainda fossemos todos iguais, uma tribo para sempre classificada e não parte de uma globalização, boa ou má, mas que faz da diversidade todas, ou quase todas, as nações do mundo. Entre tudo isto, o autor lembra que tempos houve em que a nossa Imprensa prestava atenção ao país peregrino, mas agora integrado em boa parte do mundo, com outras ideias, com outro modo de vida, e com uma saudade não sentimentalista, mas sim de respeito pela diferença dentro e fora do seu país natal.

    É certo – escreve Diniz Borges num dos seus ensaios deste livro – que variadíssimos setores da nossa Diáspora envelheceram, há gente opulenta e satisfeita. Mas o mundo nunca foi feito pelos sossegados e os satisfeitos. Desde as grandes figuras da história universal, ao mais comum dos mortais, foram sempre os desassossegados que mudaram os rumos da história. O envelhecimento na idade é irreversível, porém as ideias, os sonhos, as utopias, jamais podem envelhecer e há que trabalhar, em ambos os lados do Atlântico, para uma diáspora que mantenha sempre o debate de ideias novas e a construção do possível e do impossível”.

    Aí está um resumo desta longa prosa de um dos mais importantes escritores, ativistas comunitários e políticos da nossa Diáspora nos Estados Unidos. São mensagens para uns e outros nos dois lados do mar? São, mas ainda muito, muito mais. São análises contundentes dos nossos falhanços num entendimento que deveria ser mútuo, e não é. A pretendida preocupação dos nossos políticos, desde o Presidente da República aos nossos representantes eleitos do Açores, parece mais narcisista do que sincera – pelas palavras ocas que lá levam, pelas ações ou sessões cerimoniosas cá e lá. Que fazer? Como o fazer? Tudo isto requer estudo, atenção a quem tem lutado por uma região, por um país que não seja meramente condescendente porque as culpas da nossa sangria emigrante (e imigrante) vêm de longe, devem-se acima de tudo à injustiça do passado e à contínua incompetência e pouco conhecimento do presente. Que aguentemos agora com uns Estados Unidos sem respeito nem compreensão pelos que tiveram de fugir da miséria e da falta de políticas que garantissem a estabilidade de um país sempre adiado. Mais cá dentro do que lá fora.

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Diniz Borges, Raízes E Horizontes: Narrativas Da Diáspora Açoriana, Letras Lavadas, Ponta Delgada, 2025.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 2 de maio de 2025. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Conversa com Alexandre Borges: Prosa, Poesia e Televisão

 

Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre.

Alexandre Borges

    Alexandre Borges é um escritor e argumentista natural de Angra do Heroísmo (1980) e radicado em Lisboa desde 1998. Foi editor de cultura de A Capital, crítico de cinema do jornal “i”, e é, atualmente, diretor criativo de uma agência de comunicação e colunista do Observador.

    Publicou Dez Histórias de Amor em Portugal, Heartbreak Hotel, Todas as Viúvas de Lisboa, Histórias Secretas De Reis Portugueses, O Boato – Introdução Ao Pessimismo, As Vitórias Impossíveis na História de Portugal, Santos e Milagres – Uma História Portuguesa de Deus, e Atenção ao Intervalo entre o Caos e o Comboio. Algumas destas obras constam do Plano Regional de Leitura dos Açores, poesia e prosa.

    Falar com esta outra geração de escritores que se seguiu à minha é um dos meus maiores desafios – e prazeres – pela grande qualidade da sua escrita em praticamente todas as formas e temas abordados.


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    Foste de Angra do Heroísmo para Lisboa muito novo, e todos os estudos superiores foram realizados lá. Como foi essa caminhada em procura de uma formação literária e carreira?

    Foi pacífica de uma forma com que, hoje, só poderia sonhar. Tenho a impressão de que escolhi mais facilmente a minha vida aos 17 anos do que agora, quarentão, escolho um frigorífico. Aquela questão: “o que é que queres ser quando fores grande?”, nunca me atormentou. Em adolescente, já sabia que seria escritor; tudo o resto era secundário a esta finalidade. Tinha a noção de que ninguém vivia dos livros e que, portanto, para pagar a renda, teria de duplicar a escrita num uso mais rentável, a trabalhar em jornais ou na televisão, e que o curso superior também deveria servir esta função: ajudar-me a escrever melhor, ou pelo menos, a pensar. Daí a Filosofia. Tinha uma fé cega de que viveria disso e, até hoje, não me enganei.

    Comecei a escrever, regularmente e de forma remunerada, aos 14 anos, na imprensa açoriana, o que me faz dar agora conta de que, por absurdo que pareça, levo 30 anos de “carreira”. Mas era óbvio que teria mais oportunidades nesta vida à beira-Tejo do que à beira Porto Pipas, por muito que ame o Porto Pipas e a memória dos passeios com o meu avô. E depois, havia uma vontade de mundo. Em 1998, a distância metafórica entre os Açores e Lisboa já não era certamente a mesma que no Gente Feliz com Lágrimas, do João de Melo, ou na Fome, do José Martins Garcia, mas ainda não havia internet nem companhias aéreas low cost. Quando saías, sabias que ias passar a ver a tua família só no Natal e no Verão. Mas havia um gozo enorme nessa emancipação, nesse mergulho no mundo. Ainda por cima, no ano em que Lisboa recebia a Expo e te cruzavas na rua com gente de toda a parte, naquele frisson de fim de século. Foi um momento magnífico para um miúdo de 17 anos, sair de debaixo das saias da mãe para a cidade grande. Tudo o resto decorreu daí.

    Como alguns outros, optaste pelo não regresso definitivo. Fala-me de como pensaste a tua vida a longo prazo.

    Confesso-te que a coisa mais parecida que tive com um plano a longo prazo foi – é – a convicção de que escreverei até ser velhinho ou me mandarem parar. Tive sempre uma confiança cega de que as coisas correriam bem profissionalmente – tão cega como a descrença em vir a ser um “homem de família” (não que não o desejasse, não necessariamente, mas, se elegesse como objectivo fundamental ser pai de família, creio que teria voltado. As cidades grandes não são sítios para criar crianças. Aí, vem-me um receio muito ilhéu). Logo que cheguei a Lisboa, comecei a fazer teatro e a trabalhar na imprensa universitária; a partir daí, uma coisa foi sempre levando a outra: duma revista para a televisão, da televisão para um jornal, dum jornal para outro projecto qualquer. Tudo me pareceu sempre apenas uma modalidade diferente de literatura: para o ecrã, para o palco, para a folha de jornal.

    Claro que as coisas nem sempre correram bem, mas, quando isso aconteceu, a escrita pura esteve sempre lá. No dia em que A Capital fechou e fui para o meu primeiro e, até hoje, único desemprego (os deuses assim o conservem), antes que começasse a desesperar, escrevi as primeiras linhas do meu primeiro romance; no dia em que acabei o romance, comecei um blogue de aforismos que também viria a dar livro. Ao fim de seis meses, voltei ao trabalho “diurno”, com muitas lições de humildade, a escrever telenovelas para a TVI com a mesma seriedade com que trabalhava em programas de autor e documentários para a RTP2, a inventar concursos para o prime time ou a fazer crítica de cinema para intelectuais. Mas os livros, a poesia, o romance, a crónica, foram sempre o que me salvou do vazio, o que deu sentido a tudo. Até hoje. Mesmo que produza muito menos livros do que gostaria, por falta de tempo ou disciplina. É a fé de que ainda se escreverá aquele livro de que sempre nos acreditámos capazes o motor imóvel de tudo.

        A tua poesia e prosa tanto contém a universalidade da tua geração como a recordação numa ilha como a Terceira, uma pequena terra no meio do oceano que só agora começa a ser descoberta por todos os outros. Que relação manténs com outros cá residentes?

    


    D
e facto, durante muito tempo, só sentia necessidade de escrever a olhar para fora. Há dois tipos de artistas: os que escrevem, pintam, compõem, para que o mundo os compreenda, e os que escrevem, pintam, compõem, para compreender o mundo. Sempre me vi no segundo grupo. Fascina-me, sobretudo, a vida multiplicada das cidades e a possibilidade de um Deus, real ou irreal, acontecer no meio delas. Mas, com o passar do tempo, comecei, finalmente, a sentir também a necessidade, a vontade e, acima de tudo, a capacidade de escrever sobre o lugar de onde vim e para o lugar de onde vim. Penso, sinceramente, que um escritor é muito mais a maneira como olha do que aquilo que olha. A perspectiva e não o tema. Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre. Mas, depois de 26 anos de Lisboa, ela também já forjou qualquer coisa bastante no açoriano para que ele consiga olhar a terra-natal como objecto literário; ter alguma coisa, mínima que seja, para lhe dizer.

    De resto, de há alguns anos para cá, tenho tido o privilégio de voltar a trabalhar e a viver momentos muito importantes nos Açores, uns tão difíceis como enterrar amigos, outros tão belos como voltar a escrever especificamente para um público açoriano, apaixonar-me, conhecer e colaborar com pessoas extraordinárias que trabalham hoje nos Açores em literatura, cinema, fotografia, pintura, música, em tantas áreas, com enorme qualidade e, ao mesmo tempo, cheias de mundo e de ilha. Admiro-as profundamente pelo equilíbrio que conseguiram.

    A tua literatura, como a defines em termos temáticos, um comboio em direção contrário à tua real vontade, ou mesmo saudade?

    Obrigado por esta conversa, Vamberto. Está a ser muito importante para mim porque, em cada pergunta, juntas a vida à escrita, que é como elas acontecem.

    Não consigo definir. Não sei de que estilo ou escola sou. Talvez fosse melhor escritor se o fizesse, mas também corria o risco de secar. Sendo-te completamente sincero: penso que haverá poucas pessoas que escrevam mais do que eu. Há 30 anos (como vimos) que os meus dias são passados em frente a um teclado a matraquear crónicas, críticas, guiões, vídeos para clientes – bancos, seguradoras, partidos políticos, marcas de sapatos, tudo o que te passe pela cabeça – e, sempre que possível, peças de teatro, poemas, contos, histórias, ensaios de romance. E, no entanto, frequentemente parece-me que não escrevi nada. Que nada disto fica. Que diluis o teu coração e o teu olhar de poeta em tudo e que isso faz com que tudo seja um bocadinho bom, mas que nada seja realmente extraordinário. Mas lá está: vou continuar até escrever o livro de que estou convencido de ser capaz. Ou que o tribunal me proíba de aproximar a menos de 50 metros de um Word.

    De resto, continuo apaixonado por Lisboa. Mas nada me faz mais feliz nem realizado do que sentir que qualquer coisa que escrevi tocou alguém na Terceira, nas Flores, no Pico, em Santa Maria, em São Miguel (tornei-me açoriano aos 17 anos. Até aí, era só terceirense. É quando vamos embora que ficamos, realmente, dos Açores). Porque, no fim, o que todos queremos é ser amados por quem nos pôs no mundo. Por quem nos viu crescer.

    Portanto, o comboio vai-nos trazendo a casa. E já não tenho dúvidas de que, um dia, será de vez. Por enquanto, simplesmente, é-me mais fácil escrever com semáforos e marquises do outro lado da janela, do que com a majestosa beleza açoriana, que me paralisaria e faria achar fútil qualquer esforço pretensamente criativo.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 27 de dezembro de 2024