O que é certo é que a realidade foi remodelada através de imagens e de sons cristalizados, ressurgindo numa apreensão oblíqua envolta na penumbra da memória.
Vasco Pereira da Costa, Os Contos
Permitam-me começar por dizer que conheço pessoalmente Vasco Pereira da Costa desde o fim dos anos 80 aquando dos já históricos encontros da Maia, aqui em São Miguel, organizados por Daniel de Sá, Afonso Quental e Urbano Bettencourt. Nunca o tinha lido, por falta minha, mas eu vivia, em termos geográficos, muito longe de tudo que era Açores e em geral Portugal. A partir desses inesquecíveis momentos começou a leitura da sua obra, hoje vasta entre ficção, poesia e ocasionais ensaios. O nosso primeiro encontro de amizade não evitou certas discordâncias literárias quanto a literatura açoriana, e que agora prefiro denominar de literatura de língua portuguesa. A sua humildade como escritor – sinal fundamental da sua já então estatura entre nós como prosador de língua portuguesa – está firme agora na minha própria memória. Notem aqui que desde há alguns anos também eu resisti escrever a expressão “literatura açoriana”, mesmo que ainda o faça de vez em quando, não por complexos meus nem de ninguém. É o meu respeito por outras visões do que os escritores nos Açores ou açorianos fora do arquipélago definiam para si próprios.
Tudo isto vem a propósito dessa mesma questão da literatura açoriana. Foi demasiado incomodativo para muitos outros, mas creio que não para ele, a sua descrença, por assim dizer, vinha sempre acompanhada pelo seu humor e companheirismo. O tempo passa. Deveríamos ter todos a capacidade intelectual de mudar de ideias, ou pelo menos reconhecer ou reconsiderar a crítica e a visão dos outros, de quem também pensa, estuda, e chega a outras posições ante qualquer questão literária ou artística saídas seja de qualquer for o país ou a região. Estou aqui como leitor de de língua portuguesa desde há muitas décadas, consciente de que a geografia do pensamento e criação artística não existe, e nunca existiu. Nada disto cancela a literatura açoriana necessariamente com as suas coordenadas muito próprias, mas sempre no contexto da sua história fundacional e o percurso sempre do mesmo país (resisto a dizer nação) e da mesma língua, estas ilhas nunca separadas do seu nascimento humano e da gente de onde originamos e a que pertencemos por inteiro. Outra noção minha: a nossa literatura e política foi constante desde o início de integração e nunca de separação. Eis aqui o centro literário de Vasco Pereira da Costa, que nunca desfez nas suas origens, nunca negou as excentricidades da vida em comum a meio atlântico, nunca escondeu as personagens que só podem ser identificadas como símbolos da nossa originalidade adentro do país português.
Toda a literatura é memória, e, segundo Harold Bloom, até mesmo a crítica literária. Os grandes escritores vão um pouco mais além da escrita histórica mais ou menos oficializada pelas instituições, que geralmente se limita à voz dos poderes e de um tempo em que o geral de uma sociedade que só revivia na poesia e na ficção, este um dos termos talvez mais ambíguos da literatura. Os famosos Anais franceses viriam a reconstituir a vida e a penumbra dos povos anónimos, sem os quais nenhuma sociedade existiria, como nunca existiu e nem existe. Não quero aqui fazer uma lista exaustiva da obra de Vasco Pereira da Costa, que está aberta a qualquer leitor interessado. Basta-me dizer que estes contos – alguns deles autênticas novelas – são essencialmente a memória de uma criança em Angra, e depois do adulto em Coimbra a relembrar as suas origens, desde Angra do Heroísmo e Coimbra a várias geografias da nossa Diáspora. A suas personagens que vão dos homens e das mulheres que entravam num Café ou Pastelaria, despejam um prato ou um copo e desatavam a falar sobre as suas e vidas e a dos outros. Namorados e amores numa pequena cidade, ou então essa memória e o quotidiano já no país maior que tem, uma vez mais, Coimbra como um outro foco de vida e tribulações, quase sempre individuais, únicas, estranhas e a um tempo familiares a qualquer leitor atento. Ler Vasco Pereira da Costa é reler a nossa história cercada pelo mar ou liberta pelos grandes meios que escolheu em vez das ilhas, sejam elas a Terceira ou o Pico, todas elas a metáfora de um povo sem geografia definida, e as mais das vezes (in)desejada. A sua linguagem está entre o humor, algumas vezes o sarcasmo que também faz parte da nossa herança literária de todo o nosso país desde a sua nascença de quase mil anos, e por vezes um choro escondido nesse riso que são as suas palavras – a saudade de um tempo, a fuga da pequenez comunitária, a libertação nada menos problemática para os seus narradores noutros lugares e circunstâncias.
Tive um mentor literário na minha faculdade californiana durante a minha pós-formação em literatura internacional, Michael Holland, que sabia que a crítica literária ou apreciação de qualquer texto de outros era a minha vocação. Lembrava-me muita coisa do seu saber, já numa idade avançada. Uma das suas sugestões (nunca afirmava nada definitivamente) era que um texto sobre um livro sem uma citação era como um esqueleto sem carne. Deves citar o autor, dizia, para que o eventual leitor tenha uma ideia da prosa, do seu estilo, do seu tema, da sua capacidade de dizer o que mais ninguém tenha dito, ou que se disse desde os tempos primórdios, mas agora de modo só seu, as linguagens a curvarem-se à sua genialidade, à originalidade com que a modernidade entendia ou pensava que entendia a condição humana. Uma vez mais, nem geografia nem língua interessam, só a sua capacidade de dizer ou redizer o que já tínhamos como conhecimento adquirido. Alguns escritores dos Açores fariam isso mesmo: rever vidas num determinado contexto histórico, numa comunidade que será sempre “igual” à de todos os outros, mas com as suas características muito próprias, sejam elas individuais ou coletivas no seu espaço de nascença e vida. A vida nas ilhas açorianas e em toda parte são parte universalista não só do seu país como são parte, repita-se, de um todo em qualquer parte do mundo.
Vasco Pereira da Costa é um desses nossos escritores que nunca se baixou às supostas tradições ou noções sociais das suas origens. Filho de uma cidade ainda no seu tempo caída e logo reerguida, as metáforas do destino humano a primazia da sua escrita. Os seus poemas são também um exercício literário destes protocolos que ele traça até aos poetas e antigos pensadores gregos – a antiguidade a prever os nossos tempos, os nossos tempos a reescrever a antiguidade.
“O cónego – diz um dos seus narradores no conto O Primeiro Diógenes – abominava o álcool, tresandava a cânfora e condenava implacavelmente todo o excesso. Regrava-se pelo máximo rigor na fruição dos prazeres do corpo, e os seus dedos papudos tamborilavam ameaças entre os naperons e os quadradinhos de marmelada de Dona Pureza. O seu olhar duro cravava-se impiedoso no copo modesto (que remédio, não é Diógenes?) do Nosso Primeiro.”
Eis aí Diógenes como grego relembrado, o filósofo, dizem os entendidos, do cinismo, continuado nesta meia ou quase ficção de Vasco Pereira da Costa. Será este talvez o nosso único escritor modernista que consegue relembrar-nos a continuidade do nosso pensamento e vivência, a hipocrisia dos nossos templos e as suas autoridades em perfeita consonância com a longa linha histórica da nossa existência e crenças. Ler o autor de Os Contos, agora reunidos num só volume e deixando de fora uns tantos outros, é ler-nos a nós próprios, como aliás eu escrevi em relação à novela Plantador de Palavras/Vendedor de Lérias.
“Só com palavras de viçosa raiz – escreveu um dia João Gaspar Simões sobre Vasco Pereira da Costa – se escreve viçosa literatura. Só com palavras com raiz, incontestavelmente, é que se pode ir longe na escrita literária. E por isso aqui estou a saudar um novo plantador de palavras”.
Isso João Gaspar Simões, que é citado na contracapa de Os Contos de Vasco Pereira da Costa, juntamente com outros, escreveu há uns bons anos no Diário de Notícias. Há escritores que tentam reinventar personagens e as suas vivências nos mais distantes e diferentes pontos do nosso planeta. A grande literatura universal é uma só. Acontece que esta saiu das ilhas açorianas e das lembranças que a fuga para outras geografias nunca apagou, nem poderia apagar. Alguns dos melhores críticos norte-americanos diziam que a ficção não deixava de ser ficção, só que a autenticidade dos seus autores era absolutamente essencial, a “mentira” tinha de ser plausível. Cada leitor iria, teria de reconhecer-se na literatura de outros tempos, e naturalmente na da sua contemporaneidade.
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Vasco Pereira da Costa, Os Contos, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2024.
BorderCrossings do Açoriano Oriental de 15 de novembro de 2024