sexta-feira, 15 de novembro de 2024

De Vasco Pereira da Costa e da sua prosa entre a realidade e a ficção


O que é certo é que a realidade foi remodelada através de imagens e de sons cristalizados, ressurgindo numa apreensão oblíqua envolta na penumbra
da memória.

Vasco Pereira da Costa, Os Contos


    Permitam-me começar por dizer que conheço pessoalmente Vasco Pereira da Costa desde o fim dos anos 80 aquando dos já históricos encontros da Maia, aqui em São Miguel, organizados por Daniel de Sá, Afonso Quental e Urbano Bettencourt. Nunca o tinha lido, por falta minha, mas eu vivia, em termos geográficos, muito longe de tudo que era Açores e em geral Portugal. A partir desses inesquecíveis momentos começou a leitura da sua obra, hoje vasta entre ficção, poesia e ocasionais ensaios. O nosso primeiro encontro de amizade não evitou certas discordâncias literárias quanto a literatura açoriana, e que agora prefiro denominar de literatura de língua portuguesa. A sua humildade como escritor – sinal fundamental da sua já então estatura entre nós como prosador de língua portuguesa – está firme agora na minha própria memória. Notem aqui que desde há alguns anos também eu resisti escrever a expressão “literatura açoriana”, mesmo que ainda o faça de vez em quando, não por complexos meus nem de ninguém. É o meu respeito por outras visões do que os escritores nos Açores ou açorianos fora do arquipélago definiam para si próprios.

    Tudo isto vem a propósito dessa mesma questão da literatura açoriana. Foi demasiado incomodativo para muitos outros, mas creio que não para ele, a sua descrença, por assim dizer, vinha sempre acompanhada pelo seu humor e companheirismo. O tempo passa. Deveríamos ter todos a capacidade intelectual de mudar de ideias, ou pelo menos reconhecer ou reconsiderar a crítica e a visão dos outros, de quem também pensa, estuda, e chega a outras posições ante qualquer questão literária ou artística saídas seja de qualquer for o país ou a região. Estou aqui como leitor de de língua portuguesa desde há muitas décadas, consciente de que a geografia do pensamento e criação artística não existe, e nunca existiu. Nada disto cancela a literatura açoriana necessariamente com as suas coordenadas muito próprias, mas sempre no contexto da sua história fundacional e o percurso sempre do mesmo país (resisto a dizer nação) e da mesma língua, estas ilhas nunca separadas do seu nascimento humano e da gente de onde originamos e a que pertencemos por inteiro. Outra noção minha: a nossa literatura e política foi constante desde o início de integração e nunca de separação. Eis aqui o centro literário de Vasco Pereira da Costa, que nunca desfez nas suas origens, nunca negou as excentricidades da vida em comum a meio atlântico, nunca escondeu as personagens que só podem ser identificadas como símbolos da nossa originalidade adentro do país português.

    

    Toda a literatura é memória, e, segundo Harold Bloom, até mesmo a crítica literária. Os grandes escritores vão um pouco mais além da escrita histórica mais ou menos oficializada pelas instituições, que geralmente se limita à voz dos poderes e de um tempo em que o geral de uma sociedade que só revivia na poesia e na ficção, este um dos termos talvez mais ambíguos da literatura. Os famosos Anais franceses viriam a reconstituir a vida e a penumbra dos povos anónimos, sem os quais nenhuma sociedade existiria, como nunca existiu e nem existe. Não quero aqui fazer uma lista exaustiva da obra de Vasco Pereira da Costa, que está aberta a qualquer leitor interessado. Basta-me dizer que estes contos – alguns deles autênticas novelas – são essencialmente a memória de uma criança em Angra, e depois do adulto em Coimbra a relembrar as suas origens, desde Angra do Heroísmo e Coimbra a várias geografias da nossa Diáspora. A suas personagens que vão dos homens e das mulheres que entravam num Café ou Pastelaria, despejam um prato ou um copo e desatavam a falar sobre as suas e vidas e a dos outros. Namorados e amores numa pequena cidade, ou então essa memória e o quotidiano já no país maior que tem, uma vez mais, Coimbra como um outro foco de vida e tribulações, quase sempre individuais, únicas, estranhas e a um tempo familiares a qualquer leitor atento. Ler Vasco Pereira da Costa é reler a nossa história cercada pelo mar ou liberta pelos grandes meios que escolheu em vez das ilhas, sejam elas a Terceira ou o Pico, todas elas a metáfora de um povo sem geografia definida, e as mais das vezes (in)desejada. A sua linguagem está entre o humor, algumas vezes o sarcasmo que também faz parte da nossa herança literária de todo o nosso país desde a sua nascença de quase mil anos, e por vezes um choro escondido nesse riso que são as suas palavras – a saudade de um tempo, a fuga da pequenez comunitária, a libertação nada menos problemática para os seus narradores noutros lugares e circunstâncias.

    

    Tive um mentor literário na minha faculdade californiana durante a minha pós-formação em literatura internacional, Michael Holland, que sabia que a crítica literária ou apreciação de qualquer texto de outros era a minha vocação. Lembrava-me muita coisa do seu saber, já numa idade avançada. Uma das suas sugestões (nunca afirmava nada definitivamente) era que um texto sobre um livro sem uma citação era como um esqueleto sem carne. Deves citar o autor, dizia, para que o eventual leitor tenha uma ideia da prosa, do seu estilo, do seu tema, da sua capacidade de dizer o que mais ninguém tenha dito, ou que se disse desde os tempos primórdios, mas agora de modo só seu, as linguagens a curvarem-se à sua genialidade, à originalidade com que a modernidade entendia ou pensava que entendia a condição humana. Uma vez mais, nem geografia nem língua interessam, só a sua capacidade de dizer ou redizer o que já tínhamos como conhecimento adquirido. Alguns escritores dos Açores fariam isso mesmo: rever vidas num determinado contexto histórico, numa comunidade que será sempre “igual” à de todos os outros, mas com as suas características muito próprias, sejam elas individuais ou coletivas no seu espaço de nascença e vida. A vida nas ilhas açorianas e em toda parte são parte universalista não só do seu país como são parte, repita-se, de um todo em qualquer parte do mundo.

    Vasco Pereira da Costa é um desses nossos escritores que nunca se baixou às supostas tradições ou noções sociais das suas origens. Filho de uma cidade ainda no seu tempo caída e logo reerguida, as metáforas do destino humano a primazia da sua escrita. Os seus poemas são também um exercício literário destes protocolos que ele traça até aos poetas e antigos pensadores gregos – a antiguidade a prever os nossos tempos, os nossos tempos a reescrever a antiguidade.

O cónego – diz um dos seus narradores no conto O Primeiro Diógenes – abominava o álcool, tresandava a cânfora e condenava implacavelmente todo o excesso. Regrava-se pelo máximo rigor na fruição dos prazeres do corpo, e os seus dedos papudos tamborilavam ameaças entre os naperons e os quadradinhos de marmelada de Dona Pureza. O seu olhar duro cravava-se impiedoso no copo modesto (que remédio, não é Diógenes?) do Nosso Primeiro.”

    Eis aí Diógenes como grego relembrado, o filósofo, dizem os entendidos, do cinismo, continuado nesta meia ou quase ficção de Vasco Pereira da Costa. Será este talvez o nosso único escritor modernista que consegue relembrar-nos a continuidade do nosso pensamento e vivência, a hipocrisia dos nossos templos e as suas autoridades em perfeita consonância com a longa linha histórica da nossa existência e crenças. Ler o autor de Os Contos, agora reunidos num só volume e deixando de fora uns tantos outros, é ler-nos a nós próprios, como aliás eu escrevi em relação à novela Plantador de Palavras/Vendedor de Lérias.

Só com palavras de viçosa raiz – escreveu um dia João Gaspar Simões sobre Vasco Pereira da Costa – se escreve viçosa literatura. Só com palavras com raiz, incontestavelmente, é que se pode ir longe na escrita literária. E por isso aqui estou a saudar um novo plantador de palavras”.

    Isso João Gaspar Simões, que é citado na contracapa de Os Contos de Vasco Pereira da Costa, juntamente com outros, escreveu há uns bons anos no Diário de Notícias. Há escritores que tentam reinventar personagens e as suas vivências nos mais distantes e diferentes pontos do nosso planeta. A grande literatura universal é uma . Acontece que esta saiu das ilhas açorianas e das lembranças que a fuga para outras geografias nunca apagou, nem poderia apagar. Alguns dos melhores críticos norte-americanos diziam que a ficção não deixava de ser ficção, só que a autenticidade dos seus autores era absolutamente essencial, a “mentira” tinha de ser plausível. Cada leitor iria, teria de reconhecer-se na literatura de outros tempos, e naturalmente na da sua contemporaneidade.

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Vasco Pereira da Costa, Os Contos, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2024.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 15 de novembro de 2024

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Da dor e da alegria de atravessar fronteiras

 


O Vamberto e o Anthony eram vistos a andar nos corredores da Pleasant View School com as suas cabeças juntas e a falar das situações do momento, com as suas caras iluminadas pelos sorrisos e gargalhadas.

Mary Barcellos Chancellor, numa recente carta que me foi enviada


Mary Barcellos Chancellor fala aqui da minha amizade com o seu irmão Anthony Barcellos, falecido recentemente (precisamente da minha idade), mas chegarei lá só daqui a pouco. Hoje nem imagino do que falávamos ainda tão crianças, mas aparentemente já com “ideias”.

Primeiro do que tudo. Sais de uma pequena ilha açoriana da Ilha Terceira em 1964. Tens um primeiro ano completo do Liceu Nacional de Angra do Heroísmo. Tens 13 anos de idade. Logo, deixas a tua freguesia rural do Concelho da Praia da Vitória – em lágrimas e em insegurança absoluta e, sim, medo. Estás no momento de deixar o teu lugar de nascimento e de criança feliz, a única geografia que conheces. Num mês de junho, com todos os vizinhos e familiares na despedida, rumo a mares revoltos, pelo menos nesses dias, rumo ao cais de Angra. Vais ser assistido por homens que te metem num barco de boca aberta porque o navio Funchal ancorava ao longe, para depois subires uma longa escada de corda, sempre com a ajuda dos tripulantes a bordo. A viagem é para Ponta Delgada, onde me esperava décadas depois o meu destino tão trágico como feliz. Na manhã seguinte vias uma outra cidade, que me parecia grande e naturalmente estranha mas acolhedora. Correria em espanto e à espera dos exames de saúde e dos papéis do consulado americano. Mais uma viagem, agora para Santa Maria a bordo do navio Ponta Delgada, toda a beleza do nosso mar e de mais uma ilha desconhecida como paragem e seguimento. Lembro-me de meu pai nos oferecer uma volta à ilha que nos embarcava para a América. Não me lembro se o avião era da Pan American ou da TWA, mas isso não me incomoda. Sei que, uma vez mais, o medo de tudo isso era real, mas uma criança nunca se assusta assim tanto, a confiança em quem nos acompanha e protege nunca é questionada. O terceiro destino era Boston. Sei que escrevi um “diário” a bordo, mas nunca mais o encontrei na estranheza de toda a viagem e do fascínio de voar horas sem suspeitar nunca do que encontraria.

O primeiro choque cultural seria delicioso: escadas rolantes, para quem nunca tinha visto ou subido num elevador, e o cheiro das comidas e dos refrigerantes. América! Mal sabia eu que ainda haveria mais um avião e mais de cinco horas até Los Angeles, onde nos esperavam uns poucos da nossa família, agora de carro e mais de três horas na auto-estrada 99, que percorre quase todo o estado da Califórnia. Íamos para o Vale de São Joaquim, mais precisamente para a cidade das minhas saudades, Porterville, mesmo que a nossa nova residência fosse da ruralidade de fazendas e vacarias onde meu pai trabalharia um ano e pouco a ordenhar vacas, também para a família que lá havia chegado décadas antes. Ele na Terceira tinha rejeitado essa vida de terras e trabalhos associados. Entrou na base americana das Lajes muito novo, falava um inglês fluente depois de tantos anos como trabalhador no Clube de Oficiais Americanos. Estou aqui a falar de histórias muito antigas, mas que fazem parte da minha pessoa, da minha experiência de vida.

Nessa ruralidade californiana cheia de beleza e bondade conheci Anthony Barcellos, o primeiro e o mais significante amigo da minha vida. Apesar de um ano de liceu na Terceira, a minha idade não permitia ainda a escola secundária na América. Anthony cresceu na vacaria dos seus pais e avós a pouca distância de mim, e tínhamos de tomar uma daquelas camionetas amarelas, ícones igualmente da escolaridade numa terra tão vasta como o meu novo país. Foi a minha salvação, pois falava uma única palavra em inglês. Ok não conta para nada. Ele fez questão desde o início de ser meu amigo e “professor” ocasional da minha outra língua desconhecida. Na sala de aula sentava-se ao meu lado por ordens do professor, Mr. Snow, para que me traduzisse as instruções todas, as leituras e o resto que acontece entre crianças e adolescentes recém chegados. Não havia a chamada “educação bilingue”, o que nos exigia um esforço superior, atento. Passávamos por uma pequena cidade de nome Poplar, que desembocava na Pleasant View School, no meio de vastas terras que pareciam de ninguém e muito mais expansivas do que toda a minha ilha natal. Foi um recomeço radical, desafiador, feliz. Quando recordo esses tenros anos de escolaridade, Anthony regressa-me sempre com saudade e carinho.

Pouco depois meu pai, que era de falas contidas mas de ações determinantes resolveu deixar o trabalho com a família e ir para longe, para a grande Los Angeles e Imperial Valley, para uma cidade de nome Chino, onde trabalhou o resto da sua vida, com regressos periódicos à sua casa nas Fontinhas. Afinal a sua verdadeira “América” tinha sido na Terceira, e não na terra prometida no lado de lá do Atlântico. Outro destino meu estava marcado. Entrei em duas faculdades, e depois 14 anos como professor numa escola secundária. Perdi todo o contacto com Anthony Barcellos, até, décadas depois, ele publicar o seu supremo romance Land of Milk and Money, numa prosa devastadora na sua ironia e ajuste com o seu próprio passado. Retomámos a nossa relação à distância, e sinto de novo a falta que ele me faz. Pouco antes de falecer pediu à Mary que me dissesse o que lhe estava a acontecer. Foi-me doloroso – tanto a sua fatalidade como o seu nunca me ter esquecido num último adeus.

É claro que essa América não pode nem deve sair mais de mim. Quando hoje me perguntam o que penso daquele meu outro país, “dos americanos”, respondo sempre com outra pergunta: que “América”, quais dos “americanos”? Os da bondade e decência, ou os da raiva irracional e violências? Finalmente, os portugueses começam a entender que tanto o nosso país como todos os outros são constituídos por muita gente. A memória viva evita os julgamentos e os preconceitos de toda a espécie.

Anthony Barcellos permanece em mim como o exemplo de um grande ser humano, de um grande professor universitário, de um grande escritor, de um grande assessor da Assembleia Estadual da Califórnia. Foi e será sempre o amigo de referência para a minha cidadania e vida intelectual.

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A tradução da epígrafe que me foi enviada em inglês é da minha responsabilidade. Um grande obrigado a Deanna Overholt-Sturgeon por descobrir nos seus ficheiros a nossa foto em grupo.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, de 1 novembro de 2024

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Sobre Han Kang, Prémio Nobel 2024

Cobertos de flores e folhas e pedúnculos verdes, aqueles corpos estavam tão alterados que já não pareciam de pessoas. Os seus movimentos sinuosos davam a ideia de que estavam a tentar libertar-se de tudo o que fosse humano.

Han Kang, A Vegetariana


O termo pós-humano vem sendo, desde há alguns anos a esta parte, crescentemente aplicado pela crítica literária, já se sabe, pós-moderna, não tanto em busca dos seus possíveis significados teológicos, mas talvez num desejo ideológico de que já somos algo menos ou algo mais do que nos estava previsto pela História, ou então é, a um tempo, um protesto e um desejo. Protesto contra a desumanização em curso, que autores tão essenciais como Aldous Huxley já tinham ensaiado na sua melhor ficção, ou um desejo perverso de contrariar tudo o que tem sido “humano” nas sucessivas construções imaginárias através dos tempos, em que a arte desde sempre representou e tenta representar em todas as suas formas e géneros. Em literatura não há qualquer “cientificidade”, só instinto e vontade interpretativa, cada um lendo as suas páginas com toda uma geografia, passado e formação nas mais variáveis circunstâncias de vida.


V
em tudo isto a propósito do romance
A Vegetariana, da sul-coreana Han Kang. Confesso que só o título me desviaria do romance, assim como me desvio seja do que for ou de quem for que venha tão taxativamente classificado, arrumado em qualquer gaveta sócio-económica ou ideológica. Só que o seu primeiro parágrafo foi o suficiente para me agarrar à sua leitura, querendo desde logo expulsar todo o ruído à minha volta. Não tinha a ver com o facto de eu nunca ter lido um romance daquele país ou língua, ainda menos de querer tentar apreender um pouco do seu contexto social e cultural, se bem que isso acaba inevitavelmente por nos expor a essas outras e longínquas “realidades”, só para confirmarmos, pela enésima vez, que as diferenças entre nós todos são quase invisíveis ou sentidas, que a nossa humanidade esbate em todas as geografias o que nos separa, a literatura tornando-se esse “choque de reconhecimento” de que falava Herman Melville. Os protagonistas deste romance são o outro e somos nós, a estranheza dos seus nomes para um ocidental ou a culinária das suas mesas em nada os torna estranhos, a não ser a condição humana em todo o seu drama de sobrevivência e luta pela libertação de cada um nos redutos fechados em que todos nascemos. A beleza de A Vegetariana está na sua linguagem, mesmo em tradução, está na sua capacidade de ver e rever o labirinto que é o coração humano, e o seu desejo universal de fuga para um paraíso perdido.

A Vegetariana tem vários narradores e narradoras na primeira e terceira pessoas. Abre com a voz do marido, que apenas chama a esposa de “a minha mulher”, mas de nome Yeong-hye, encontrando-a uma madrugada, calada e perplexa, a olhar para um frigorífico aberto, e contemplando sem expressão e atenção a mais nada os seus conteúdos, que serão todos despejados no lixo, menos os de origem ou natureza vegetal. É descrita nos mais banais termos, como sempre tendo sido uma mulher sem qualquer distinção, quer interior quer fisicamente, nem bonita nem feia, o tipo de esposa, diz ele distanciado, que lhe convinha num casamento.“A personalidade passiva dessa mulher – diz ele – em que eu não conseguia detetar frescura, nem encanto, nem nada de particularmente refinado, servia-me na perfeição”. Eis a definição precisa de uma sociedade patriarcal, em que a mulher parece um adorno e uma servidora, não um ser vivo, com desejos ou segredos, felicidade ou infelicidade. As suas vidas, aqui, são a de uma mediocridade ritualizada, sem nenhum brilho ou sequer ambição para além do dia a dia marcado pelo trabalho profissional ou de casa. Yeong-hye vem de uma família da classe média conservadora, dominada por um pai de tolerância-zero, um ex-militar que havia combatido na guerra do Vietname, e ainda se vangloriava ante a família de quantos vietcongue havia morto. Num jantar em casa de uma outra irmã casada, In-hye, também a braços com a rotina da sua vida e um marido que se auto-define como fotógrafo ou cineasta de vídeo vivendo à custa da esposa enquanto grava o que ele acha ser o surrealismo da vida à sua volta, ou a arte contestadora de todos os valores societais, esse pai recusa aceitar a súbita condição de vegetariana da filha, que se definha perante os olhos de todos, e castiga-a à mesa com um murro na cara. O leitor vê muito pouco da sociedade exterior a estes personagens, mas adivinhamos a cada passo a sua demanda de convencionalismo fingido, e em busca do sucesso material a todo o custo. A radical transformação da protagonista é insinuada aos poucos, mas no fim percebemos que o impulso que leva a inesperados extremos numa vida ofuscada até à morte desejada de Yeong-hye é a sua profunda compreensão do Nada como condição existencial, e só na sua rebeldia tranquila ela poderá reencontrar-se consigo própria, ou então transformar-se de novo na natureza implacável de onde vem, de onde vimos todos, onde o tempo não existe e as árvores dobram-se ao vento na infinitude de um ser que de ninguém depende. A “ausência” dela nas vidas da família e do próprio marido não é chorada pela perda que deveria representar, mas sim pela “vergonha” que traz a todos com uma saída onde nem o sangue a escorrer do seu corpo a martiriza ou assusta. Onde mais ninguém via nada, no entanto, o seu cunhado armado com máquinas fotográficas e gravadores de vídeo vê uma mulher de corpo inteiro, e em viagem escondida por onde mais ninguém espreita. Algumas das cenas do romance são de uma sensualidade e beleza tão leves como o corpo pintado de Yeong-hye, e o que se segue será o que entendemos por comédia surrealista, nunca a narrativa deixando que vejamos ou interpretemos tudo isto como tragédia. O gesto de liberdade da protagonista, a sua loucura, uma vez mais, rebelde, a sua rejeição de toda uma sociedade que a queria moldar à sua imagem, o não ser amada, não permite ao leitor outra afeição a não ser um entendimento e compreensão perante as mais bizarras cenas nesta caminhada para uma outra dimensão, por vontade própria e sem remorso.


Q
uanto mais fechada uma sociedade, mais radical a transgressão libertadora? A uma vida sitiada por costumes e estruturas sociais muito antigas segue-se necessariamente a morte? Não me parece ser essa a ideia, se assim nos é permitido falar, que sobressai ao longo destas belas e vivíssimas páginas. Pelo contrário, é a procura de uma vida-outra, a rejeição de um quotidiano opressivo e sem qualquer sentido que leva estas duas irmãs aos limites da vida e do desespero, em que se confunde normalidade com a prisão que uns aceitam, mas outros não. A grande literatura é quase sempre esse ato de representar a nossa humanidade, e de nos reinventar não só como somos, mas sobretudo como gostaríamos de ser quando reconhecemos num outro a razão da sua recusa em apenas existir como mais uma peça de serviço, ou do que não acredita nem valoriza. Yeong-hye começa por ser aquela mulher absurda nas suas transformações e movimentos, a mulher que antes não era feia nem bonita, nem alta nem baixa, nem talentosa nem idiota, nem frígida nem sexual – era o que os outros queriam que fosse, nunca suspeitando que isso não lhe bastava, e que tinha a sua própria força que mais ninguém via ou suspeitava.
A Vegetariana encerra com a protagonista numa ambulância a caminho de um hospital, com a irmã ao lado. Não vão a caminho da morte ainda, parece. Vão a caminho, talvez, de uma outra vida. Com ela Yeong-hye leva a irmã – agora sabedora e liberta por obra, exemplo e força de quem havia cortado os próprios pulsos e vomitara sangue, mas sem nunca deixar de viver, a partir desses momentos, como queria e entendia. Posso estar errado aqui, mas este não é um romance sobre a morte ou a loucura. É uma tremenda reafirmação da vida livre, quando seguimos as nossas próprias escolhas e recriamos os nossos próprios seres.

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Han Kang, A Vegetariana (tradução do inglês por Maria do Carmo Figueira), Lisboa, D. Quixote/Leya, 2016. Recensão publicada no Açoriano Oriental em 2016.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 25 de outubro de 2024

Sobre a nova ficção de Álamo Oliveira


Não. O
Velho Testamento não tinha estes heróis da paixão, dos rituais da missa, das mortes dos moinhos de vento.

Os Belos Seios da Serpente

Álamo Oliveira 

É, ou deveria ser entendido, que Álamo Oliveira é um dos nossos supremos poetas, ficcionistas e dramaturgos da literatura de língua portuguesa. Natural e sempre residente na Ilha Terceira, desde Angra do Heroísmo à freguesia da sua naturalidade, Raminho, a sua carreira literária não é só distinta – deu voz, como diria o mexicano Carlos Fuentes, entre outros, a quem voz não tinha, nem nunca teve. Ser um grande escritor português nunca foi fácil, quanto a reconhecimento e a outros ritos literários premiados no chamado centro do nosso país. Só que ele conseguiu, mais do que muitos outros, que também o mereciam, essa notícia comentada da sua obra a nível nacional. Sei que ele não precisa destas minhas observações um tanto inquietas, mas não resisto ao combate pelo valor da arte literária (de outras artes não vem aqui ao acaso) em defesa ou apologia das suas obras. O presente romance deste nosso autor merece muito mais do que eu direi, é uma obra de ficção suprema fundamentada no Velho Testamento, e muito especificamente no Cântico do Cânticos, em que os nossos mais antigos davam à palavra a beleza dos homens e das mulheres, aos prazeres que Deus, ou os deuses, lhes tinham destinado e pedido. Se o “demónio” se tornaria a beleza indescritível de uma mulher desobediente no Paraíso, foi ela que obedeceu à ordem superior de ide e multiplicai-vos. Para sempre a nossa Humanidade ficou abençoada e condenada, dentro e fora do permitido e da transgressão. Não há como julgar ninguém. O novo romance de Álamo Oliveira torna-se muito mais do que isso: a continuidade da história humana em nada mudou – o estilo da modernidade e o modo como.

Os Belos Seios da Serpente vai às suas fontes primárias, para ao longo das suas páginas narrativas virar-se para a nossa atualidade – injustiças, medos, sonhos realizados ou desfeitos, ambições desmedidas pela fantasia de cada um ou uma, tantas vezes irreais noutras terras distantes e prometidas. A História dos Açores é o que é, como outros estudiosos já o disseram, de maneira diferente, o verdadeiro destino do nosso povo é a fuga e eventualmente o reencontro com a terra-mãe deixada. Logo depois da chegada às ilhas começava a partida para todo o lado, as ilhas de faias e nem sequer de início sem ratos ou lugar para ninguém. Só que muitos dos que ficaram a trabalhar as terras húmidas, o mar bravo, a sofrer os tremores de terra, e muito gravemente a fome das terras dos capitães dito donatários ou generais, os estranhos que mandavam em nós sem nunca nos conhecerem. Somos nós os verdadeiros heróis porque cuidaram desse lugar-pátrio até hoje. Os Açores são uma terra trágica, que alguns outros chamam hoje de “paraíso”. Deve ser pelo tempo ameno do clima, deve ser pela ausência de tiros de outros países, com algumas exceções. Os Belos Seios da Serpente tem tudo sobre alguns destes passos, e não precisa de mais nada. A nossa ruralidade cercada pelo Mar e pela História, os nossos novos e velhos a cultivar o pouco de terra que tinham. Todo o poder, a necessitar da memória do Velho Testamento: ditem novas regras porque aqui não Bezerro de Oiro nem Moisés a descer da montanha com ordens do seu Deus. Vulcões, sismos, uns mais destrutivos do que outros, medos e pedidos de misericórdia. Eis as ilhas e a pouca terra que nos coube. O mar foi sempre uma fonte de desgraça e salvação, e depois, uma vez mais, de fuga. A Serpente nunca nos deixou, e os seus “belos seios” foram só para quem pensava que estava no mar são e inocente– e a beber o veneno que o Reino, que sem sequer nos conhecia, oferecia aos desgraçados nas prisões e nos arredores de Alcântara, ou de onde lá atracavam as caravelas da miséria depois da bravura incontestável e dos negócios obscuros na Ásia.

Já notaram, suponho, que não nomeio uma única das poucas personagens neste romance. São da nossa ruralidade, quase todos eles com a sabedoria como com tudo que era rude no nosso dia a dia. Creio que não falho aqui quando digo que o narrador é um alter-ego do autor, esse que nos conhece palmo a palmo, cada casa da sua freguesia e os destinos domésticos ou da saída de muitos outros para além dos nossos horizontes marítimos, em que a América é a um tempo território da nossa regeneração, de riqueza – e de uma saudade ainda e sempre vivida. Álamo Oliveira já muito tem escrito sobre tudo isto, tanto na sua poesia como na sua prosa maior, da qual Já Não Gosto de Chocolates é exemplar, em que a tradição entra em conflito com a modernidade. Os Belos Seios da Serpente nunca esquece as nossas viagens para o outro lado Atlântico. Muito menos esquece que a natureza humana não conhece geografias ou culturas-outras. Neste romance ficamos entre a poesia pura e a prosa com o mesmo poder da metáfora, da sugestão ambígua, da palavra que nunca nos transmite certezas ou incertezas, leva o leitor a pensar e sobretudo a repensar-se. O narrador faz chamamentos a certa literatura ocidental, Dom Quixote a tentar a loucura da derruba dos moinhos imaginários do vento e das suas obsessões de guerreiro e amante. O recurso ao primeiro grande romance do ocidente, ou pelo menos da Península Ibérica, torna-se a nossa própria noção das batalhas improváveis de açorianos em busca das suas vitórias, mais imaginárias do que reais, a América a princesa (in)desejável e a fonte do perpétuo desafio a abanar por dentro do vento libertador, do amansar o corpo do eventual desejo de regresso às origens, geração após geração.

Eliseu dos Anjos [o narrador do romance] sabe que já passou a idade de endoidecer por causa das pernas de outra mulher. Chegou depressa à conclusão de que a viuvez também tem os seus encantos. Não ter obrigações de espécie alguma há compensa. Pensou em D. Quixote a ser perseguido por Dulcineia, a única mulher que o amava sem reservas e que era capaz de se despir para que ele descesse do cavalo e fizesse dela a sua égua. Ao lado, Sancho Pança ria com ruído infantil, pois sabia que D. Quixote preferia lutar contra um moinho do que amar o corpo de Dulcineia”.

Toda a grande literatura se torna, por assim dizer, uma espécie de autobiografia para cada um dos seus leitores? De certa maneira, sim, mas nunca na totalidade. A grandeza de um texto, como este de Os Belos Seios da Serpente, é precisamente o contrário – vermos o “outro” ou a “outra”. Tomemos conta que desde a antiguidade até hoje nada mudou. Somos iguais, como somos diferentes. Só que o mais íntimo do nosso ser permanece desde o início da nossa dita civilização. Eis aqui a grande literatura, eis a mentira como verdade, por mais inquietante que nos seja.

Finalmente, obrigado a Mário Duarte em Angra do Heroísmo por esta edição de Os Belos Seios da Serpente, um verdadeiro objeto de arte.

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Álamo Oliveira, Os Belos Seios da Serpente, Angra do Heroísmo, Vale Das Amoras, 1924.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 18 de outubro de 2024

sexta-feira, 12 de julho de 2024

O grande salto literário de Carlo Matos


Disse a todos que eu era
gay, o que não é exatamente verdade mas também não é mentira.

Carlo Matos, As Malcriadas or Names We Inheret

    O romance As Malcriadas or Names We Inheret/As Malcriadas ou Nomes que Herdamos, do luso-americano Carlo Matos (com raízes muito próximas ali nos Mosteiros), é, simplesmente dito, magnífico. Consegue a um tempo ser um grande contributo para a nossa Tradição literária na América do Norte, enquanto quebra genialmente com o mesmo cânone já existente. São poucos os escritores com esta audácia e saber. Conhecia a sua inquietante obra poética desde há algum tempo quando recenseei A School For Fishermen (2009), uma eloquente homenagem aos seus antepassados açorianos, à vida no mar atlântico e em terra americana. Viriam alguns outros depois, mas o seu título de poesia mais recente já traz um sinal também denotador do seu desassossego interior, da sua capacidade de se situar sem apologia em liberdade nos seus mundos americanos, We Prefer the Damned/Preferimos os Condenados (2021). Cada autor, sabemos, quando fiel a si próprio, carrega várias geografias humanas dentro de si, reais ou imaginadas, e no livro aqui em foco vamos da sua cidade natal, Fall River (São Miguel a ocidente) a Chicago (onde vive há anos e é, para além de coisas mais, professor universitário), com ainda uma breve passagem por Merced, um outro poiso de muitos ilhéus nossos na Califórnia. Vamos ao que nos interessa nesta sua mais recente ficção. A primeira linha na nota biográfica não pede licença a ninguém: “Carlo Matos é um bissexual+, que tem onze livros publicados...” Dirão alguns outros, e vai daí? Tudo e nada – seguido de humor, ironia e paixão. Um grande romance, responderei ainda, em abono da sua grandeza artística, do seu assumir nestas páginas que uma comunidade pode professar as suas crenças e conforme os seus preconceitos, mas não se livra de ser espelhada na sua diversidade humana por uma geração que se apresenta por inteiro no seu próprio modo de vida enquanto reclama para si o lugar firme de pertença, sem qualificativos nem reticências. O presente liberto do autor conjugasse com a memória e o respeito pelo passado dos seus, e de outros mais. Se isto não seria novidade noutras culturas mais abertas, é-o sim, entre nós, por falsas razões religiosas, e muito particularmente entre a nossa gente na lUSAlândia, essas ilhas rodeadas de América por todos os lados, nas palavras de Onésimo T. Almeida, que cristalizaram em muito, mesmo na ebulição social e cultural americana, no muito que levaram consigo destas ilhas em décadas passadas. Não se trata aqui de qualquer transgressão provocadora. Trata-se, isso sim, de ficção que transmite a verdade, ou da “verdade” que, pelo menos entre nós, sempre transmitiu ficção.

    As Malcriadas or Names We Inheret é esse grande romance na sua forma e conteúdo da literatura americana contemporânea, e também da nossa literatura em inglês, essa que reconstrói, testemunha, o como sobrevivemos ao longo dos tempos numa terra estranha, mas já onde não somos estranhos em qualquer quadrante da vida na grande sociedade a oeste. Não conhecer este facto diminui a nossa própria História insularizada. A língua não é a pátria de ninguém, absorvemos meios de comunicação de qualquer território do nosso coração, somos nós que definimos as nossas nacionalidades, que poderão ser oficializadas ou não. Ninguém melhor do que a escritora luso-americana Amy Sayre Baptista descreveu o essencial deste romance por ela prefaciado. “Somos apresentados a um rol de personagens, quatro desajustados, cujas estórias são uma espécie de saudade aguda, nostálgica mas nunca muito indulgente. Manny, Em, Gomez e Gilga são como que uma tapeçaria e Matos um mestre tecelão”. Seguimos as suas vidas num tempo em que quase todas as perguntas não tinham respostas definitivas, a procura desenfreada de uma vida satisfatória num mosaico humano sempre em construção, cada um a tentar dar um passo para além da mera sobrevivência e na busca de uma vida com sentido, nunca negando o peso do passado descentrado de pais e avós que trabalhavam como escravos na indústria têxtil da Nova Inglaterra, o proletariado fechado nos seus bairros, mantendo as suas linguagens de origem, insistindo em permanecer fiéis a tudo o que em séculos de existência a meio mar foi e é o seu legado.

    As Malcriadas é título do riso para uma banda de música dos anos do liceu em Fall River, uma homenagem cómica aos nomes desagradáveis com que nos classificavam os nossos pais, e outros, aqui traduzido pelo autor com bonomia, saudade e leveza: brats, traquinas que quebram as regras, ou algo semelhante. De casa em casa, de escola em escola, de amor em amor, sem que o género tenha qualquer significado de isolamento, o leitor vai rindo com as peripécias exigidas na luta de luso-americanos e americanas pela sua vida radicalmente distante de tudo o que esperavam as suas famílias, acompanha os momentos de choro e abandono entre o grupo de amigos que partem em direções diferentes na continuidade da descoberta da sua própria dignidade por entre verdades e mentiras nas suas relações. Eles somos nós, o inevitável corte radical sem o esquecimento dos que lhes deram vida e incutiram os valores que julgavam permitir paz e tranquilidade na efervescência social e cultural da América em movimento imparável. São eles o outro retrato das novas gerações que deixaram as fábricas da escravidão, para uma vida que se supõe maior nas academias, nas artes, no desporto. Carlo Matos, este autor empático e capaz de, uma vez mais, urdir e exprimir entre mãos e mente a prosa que faz de cada linha um poema do quotidiano, a musicalidade heteronímica que existe em cada um de nós, as imediações e o mundo em geral que ora nos aprisiona, ora nos liberta. Quando o romance vai chegando ao fim, após amores e desamores, ganhos e perdas, o narrador sente a solidão de uma modernidade que parece enlouquecida.

    O grande poder da minha avó, no entanto, não a pode proteger de Alzeimer’s, tenho sido forçado – diz o narrador nas últimas páginas deste romance a ver a sua grande luminosidade a escurecer durante duas décadas. Eu deveria ter estipulado certas condições, deveria ter escrito uma nota em letras minúsculas. Ela já não me conhece, o que é uma crueldade selvagem. E isso nem é o pior tudo. O pior de tudo foi a leviandade com que entrei na minha vida adulta, foi tão fácil para mim seguir em frente, desviar-me da mulher que me amou acima de tudo. Eu não sei que magia a mantém agarrada a este mundo – a minha ou a dela – mas espero que esta condenação termine em pouco, mesmo que a sua morte me encha de mais medo e angústia do que senti como criança...”

    O que é ou não estritamente autobiográfico neste romance pouco interessa. O seu riso e choro (nunca alheios a nenhum de nós em qualquer tempo e lugar) tem a particularidade, a originalidade, de misturar instantes eufóricos e melancólicos, num quotidiano que mais parece uma roleta russa mental, levando o leitor de um passo a outro numa narrativa em tom e andamento absolutamente diferenciados. Entre homens e mulheres não há amarras aqui, o que contradiz toda tradição das origens mais remotas e da hipocrisia que ainda pesa nas sociedades que se dizem modernas, tolerantes, conhecedoras da natureza humana e da ciência que tudo diz e contradiz. Não é um romance, digamos, libertário, As Malcriadas or Names We Inheret é muito mais uma denúncia de como as suas personagens se ocupam do que é insignificante até que a curva na estrada lhes mostre o que perderam em si próprios e perante os outros. O género da comédia literária do autor – acompanhamos a juventude e depois o evoluir da idade e das coisas – insinua em si mesmo, ou di-lo como na citação que fiz aqui, que há mais vida e morte à nossa espera, os inevitáveis ganhos e perdas de tudo e todos. No contexto da literatura luso-americana, esta é uma obra singular, alegremente atrevida, o que faltava contar sobre toda uma geração que entrou na meia idade tão perplexa como no início da rejeição e aceitação de quem é, de quem somos, e como.

    Carlo Matos não só escreve com desusada originalidade, como, pelo que sei dele das notas biográficas que acompanham os seus livros, tem uma vida, como já referi, que vai desde ser professor universitário ao desporto nas mais perigosas formas – pugilista, esgrima, e do nada menos perigoso roller-skattering, especialmente quando exercido por mulheres em corridas loucas em volta de uma apertada pista, tudo requerendo, suponho, muito cuidado com a pele, cabeça, e o coração. Tudo isto está também presente As Malcriadas or Names We Inheret, em atos de comédia pura, mas por vezes a escorrer sangue real ou emotivo. Aliás, como na sua brava narrativa. Há momentos cómicos quando dizem que ele ou ela “é dos nossos”, querendo dizer luso ou açor-descendentes, sempre nomes conhecidos mas não etnicamente descodificados. A brincadeira chega à muito famosa escritora de romances cor-de-rosa, Danielle Steel, que a “lenda” diz ter raízes na Ribeira Grande. Noutras ocasiões não têm a certeza, vão investigar, e nós rimos com eles, com o que pode ser uma futilidade de alguma (escondida) importância identitária.

    Eis a imagem de um grande escritor, em muito virada ao contrário para quem ainda pensa que a vida é uma camisa de forças. Que alívio. Que liberdade. Que palavras luminosas em forma de prosa ou poesia.

Carlo Matos, As Malcriadas or Names We Inheret, New Meridian Arts, 2022. Todas as traduções aqui são da minha responsabilidade.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 12 de julho de 2024.