sexta-feira, 9 de maio de 2025

Jogos de palavras e pós-surrealismo num romance de Luís Rego


Hoje está Lua cheia. Anda daí, vamos até ao ilhéu a nadar. A água deve estar quente!

Luís Rego, O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial


    Primeira confissão. Nunca tinha lido um livro de Luís Rego. Este foi para mim uma descoberta que eu andava à procura sem saber: um romance magnífico nas suas linguagens absolutamente originais, e parecendo que não aborda antigos tema açorianos: a vontade de permanecer na terra natal e de viajar por outros meios e imaginação, a mesma coragem dos que partiram daqui de barco ou avião, sempre de modos inesperados, sempre a desafiar a claustrofobia de uma pequena ilha em busca do inesperado e da sobrevivência. O mar, para nós, já outros o disseram, tanto é clausura como uma estrada de fuga ao cerco e em busca do inesperado, em confrontação ora com a miséria ancestral, ora no tremendo desafio do desconhecido e da prova de coragem braçal ao encontro pacífico com os outros. Só que nestas páginas esses outros são a água de um bravo bravo e inconstante Atlântico e das suas criaturas submersas. A comédia pura juntam-se aqui à seriedade da solitária e luta pela sobrevivência. Muito para além do barco ou do avião a opção nativa é a força dos braços e a emigração, por assim dizer, sempre em volta da ilha, um desafio muito mais corajoso do que a partir para terras longínquas e desconhecidas. Só um publicista profissional tem esta audácia literária, que é juntar a verdade à ficção entre seja o que for, numa tentativa de se fazer acreditar ou tornar plausível mesmo que ele próprio esteja consciente das suas palavras – nem inteiramente convincentes nem inteiramente ficcionais. Isto é ficção num renascimento nada habitual na literatura açoriana. Se o autor, que viveu e exerceu a sua profissão em Lisboa durante anos e resolveu numa determinada altura regressar às suas origens açorianas pouco deverá interessar aos leitores. Que consegue reatar a temática da nossa literatura por meios tão originais, isso sim, é que levará o leitor ao fascínio de virar cada página de um longo romance. Ao contrário do que dizia José Saramago, nunca confundir o autor com a sua personagem ou o seu protagonista. A melhor literatura é feita da imaginação pura, como sabem alguns e confundem uns tantos outros. Se em tempos Luís Rego deu aos braços cansados nas ondas do nosso mar aqui em frente às minhas janelas no Pópulo também não me interessa. Que imagina as fantasias de seres reinventados é o que leva a uma estória de que são são feitas as nossas próprias fantasias – e até desejos de mantermos tudo no segredo íntimo da nossa pessoa.

    Esta é vida de David natural de Vila Franca e cuja saída da sua extrema pobreza são as suas aventuras no mar, começando por ir a nado até ao ilhéu mais ou menos próximo. Eis a vénia à coragem de um açoriano. A chamada elite – provavelmente vinda dos pobres mais pobres embarcados à força em Alcântra nas primeiras caravelas do povoamento – começa por se sentir encomendada, como se sentia e sente ante a pobreza e a coragem sem apologia dos bravos. Eis a continuidade da nossa história, primeiro trágica e eventualmente fundadora de uma nova vida e de uma outra civilização a meio mar. Um gigante polvo, inteligente para além da nossa compreensão, dá-lhe alguns desafios, mas ele nunca tem medo. Luís Rego faz nestas paginas uma outra vénia a alguma literatura açoriana, especificamente ao romance de Carlos Tomé, O Bracinho, também este que versa a rebeldia dos ilhéus ante o poder em terra, e que parecia incontestável. Do mesmo modo, o autor faz eventuais chamamentos ao já mítico romance Moby Dick, de Herman Melville, no qual alguns açorianos, como se sabe, estão representados ostensivamente. Em pouco David, sempre com fome e sem outros horizontes, encontra um amigo local de nome Fernando Jorge, com outros meios de vida e que depressa ajuda com comida e companhia ao seu amigo e vizinho. A história açoriana é feita disto mesmo: solidariedade, desejo de fuga e desejo de nunca deixar o pedaço de terra que ama, e que é na verdade a sua casa, com terramotos e outros castigos pelo meio. Assumir a sorte do mar foi tanto ou mais heróico do que os que partiram para terras de sonho que tanto aguardavam o seu sofrimento como o seu triunfo.

    

    Nadar no mar bravo até à exaustão sem parar em volta de uma ilha é esse outro tipo de “emigração”. A metáfora de Luís Rego introduz-nos a outra maneira de partir e de ficar, apresenta o maior dilema da maioria do nosso povo. Partir em lágrimas, e depois regressar com o sorriso de quem venceu. A eventual morte é apenas um pormenor ditado pelos deuses. Neste romance O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial estamos todos representados em termos artísticos, numa linguagem a um tempo clara e subtil, só como um grande escritor é capaz de realizar. Cómico e trágico, é um romance de toda a nossa história, de nós que olhamos o horizonte com fantasias sem nunca nos darmos conta do desafio que é viver, pobre ou rico, numa terra que tudo nos dá e tudo nos tira, sem aviso e sem piedade.

    Lá David – diz o narrador a meia viagem – contou a história toda. Obviamente, Dona Laura pensou que aquela aventura era um disparate pegado [a volta à ilha sempre a nado], que podia até correr o risco de morrer, desconhecendo que a única coisa que os Pais de David lhe haviam deixado como herança fora a possibilidade de ele morrer um dia mais tarde. Ela sabia que David não tinha que provar nada a ninguém, mas pronto podia de facto emprestar a mala com primeiros-socorros, mas só porque haveria um barco que o iria acompanhar naquela loucura. E David até estava com sorte, porque a Rosa iria ter que voltar à Vila, para dar uma limpeza final à casa, à mata e à piscina, por isso, poderia levar-lhe a mala”.

    O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial é um dos nossos mais singulares romances. Nada e tudo que é a nossa história estão nestas páginas. Nada e tudo torna-se uma representação da nossa vivência nestas ilhas. Nada e todos os nossos sonhos, as nossas fantasias são o tema e as linguagens do nosso ser e estar, já não desterrados mas cidadãos do mundo, hoje ao nosso alcance, ou então a pátria do nosso viver e descanso.

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Luís Rego, O Piano De Cauda Que Nadou Do Pico Ao Faial, Letras Lavadas, Ponta Delgada, 2025.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 9 de maio de 2025

sexta-feira, 2 de maio de 2025

A voz de Diniz Borges e o nosso destino na América do Norte


Ainda caímos, facilmente, por um elogio gratuito ou uma presença ornamental nas nossas festas.

Diniz Borges, Raízes E Horizontes: Narrativas Da Diáspora Açoriana


    Diniz Borges emigrou para a Califórnia com dez anos de idade, e poucos anos depois já intervinha na vida comunitária de Tulare, no Vale de São Joaquim, que a maioria dos leitores sabem muito bem onde fica, e ainda mais sobre a vida do povo açoriano ligado maioritariamente à agro-pecuária que os nossos antepassados lá tinham desenvolvido a uma escala inigualável no mundo. Sereno e de uma consciência precocemente política e comunitária, Diniz Borges chegaria também em pouco tempo a uma faculdade estadual e depois a outra onde se formaria com um mestrado em estudos de literatura étnica, o mesmo que dizer ao estudo das literaturas dos “outros” que já vinham desde os anos 60 a reformular a ideia de “América”. Radialista num programa por ele fundado, todas a semanas cultivava a cultura portuguesa através da música e da fala sem medo nem tréguas. Quando eu viajava de quando em quando a alta velocidade de Los Angeles para o Vale de São Joaquim, Diniz convidava-me de imediato para me fazer uma entrevista na rádio sobre o estatuto das nossas comunidades, particularmente a sobrevivência da língua portuguesa na imigração. Eu já era professor bilingue no Cerritos High School, e ele pensava que eu teria algo de importante a dizer sobre o Português nos Estados Unidos. Diniz, disse-lhe num desses programas que levantaria alguma celeuma entre certos ouvintes: “caminhamos alegremente para o suicídio linguístico”. Ainda hoje ele fala-me dessas palavras, e no que teria de ouvir dos “patriotas” mais assanhados. Seguiria logo depois com a sua escrita em jornais da nossa imigração e nos Açores, a sua temática uma outra constante: o respeito e a crítica pelas nossas tradições lembradas em festas, na religiosidade de todo um povo ido das ilhas açorianas e de outras geografias de língua portuguesa. Em suma, a destreza da sua palavra abordava o dilema de uma muito antiga comunidade espalhada pela vastidão da Califórnia. Que sim, a Tradição era uma dádiva a que a própria Igreja incentivava em rituais diversos, em festas em prol da coesão de um povo numa sociedade multicultural, mas a nossa sobrevivência requeria algo de muito mais radical e seguro: a nossa integração no resto do território americano em tudo o que nos colocaria num espaço aberto, desde a política à grande e diversa cultura e modo de vida dos que connosco se definiam para além da “saudade que não chora”, como ele intitulava uma notável antologia de poesia açoriana e de luso-descendentes. Hoje, Diniz Borges dirige com saber e rigoroso sentido de missão, como docente e investigador, o Portuguese Beyond Borders Institute que integra a Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno. Posso dizer com segurança que ele neste últimos anos tem feito muitíssimo mais do que eu e alguns colegas fizemos durante tempos passados no mesmo estado. Numa outra palavra, que a Tradição se mantivesse sem nunca ser um entravo à modernidade comunitária que tardava a chegar.

    Raízes E Horizontes: Narrativas Da Diáspora Açoriana vem na sequência de uma substancial e canónica obra jornalística e literária, que inclui inúmeras traduções de autores açorianos e luso-descendentes, todas elas mencionadas nas notas de capa do livro aqui em foco. Estamos ainda e sempre ante a luta pelo respeito e progresso das nossas comunidades. Lembra-nos da nossa longa e persistente caminhada rumo à integração total na sociedade norte-americana na política, nas artes e indústria. São muitos os nomes aqui mencionados, como são as visitas dos nossos políticos e governantes regionais que evidentemente pouco aprenderam sobre a dinâmica em curso dos luso-descendentes. Chegam lá dos Açores e do continente com um discurso que nunca saiu do antigo regime: é a saudade que eles julgam ser a dos nossos imigrantes, a noção mais do que ultrapassada sobre o que é ser-se “açoriano” ou “português”, como Marcelo Rebelo de Sousa a dizer ainda recentemente naquelas paragens que somos caldo verde, futebolistas, e, suponho, comedores de bacalhau, entre outras asneiras como se ainda fossemos todos iguais, uma tribo para sempre classificada e não parte de uma globalização, boa ou má, mas que faz da diversidade todas, ou quase todas, as nações do mundo. Entre tudo isto, o autor lembra que tempos houve em que a nossa Imprensa prestava atenção ao país peregrino, mas agora integrado em boa parte do mundo, com outras ideias, com outro modo de vida, e com uma saudade não sentimentalista, mas sim de respeito pela diferença dentro e fora do seu país natal.

    É certo – escreve Diniz Borges num dos seus ensaios deste livro – que variadíssimos setores da nossa Diáspora envelheceram, há gente opulenta e satisfeita. Mas o mundo nunca foi feito pelos sossegados e os satisfeitos. Desde as grandes figuras da história universal, ao mais comum dos mortais, foram sempre os desassossegados que mudaram os rumos da história. O envelhecimento na idade é irreversível, porém as ideias, os sonhos, as utopias, jamais podem envelhecer e há que trabalhar, em ambos os lados do Atlântico, para uma diáspora que mantenha sempre o debate de ideias novas e a construção do possível e do impossível”.

    Aí está um resumo desta longa prosa de um dos mais importantes escritores, ativistas comunitários e políticos da nossa Diáspora nos Estados Unidos. São mensagens para uns e outros nos dois lados do mar? São, mas ainda muito, muito mais. São análises contundentes dos nossos falhanços num entendimento que deveria ser mútuo, e não é. A pretendida preocupação dos nossos políticos, desde o Presidente da República aos nossos representantes eleitos do Açores, parece mais narcisista do que sincera – pelas palavras ocas que lá levam, pelas ações ou sessões cerimoniosas cá e lá. Que fazer? Como o fazer? Tudo isto requer estudo, atenção a quem tem lutado por uma região, por um país que não seja meramente condescendente porque as culpas da nossa sangria emigrante (e imigrante) vêm de longe, devem-se acima de tudo à injustiça do passado e à contínua incompetência e pouco conhecimento do presente. Que aguentemos agora com uns Estados Unidos sem respeito nem compreensão pelos que tiveram de fugir da miséria e da falta de políticas que garantissem a estabilidade de um país sempre adiado. Mais cá dentro do que lá fora.

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Diniz Borges, Raízes E Horizontes: Narrativas Da Diáspora Açoriana, Letras Lavadas, Ponta Delgada, 2025.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 2 de maio de 2025. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Conversa com Alexandre Borges: Prosa, Poesia e Televisão

 

Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre.

Alexandre Borges

    Alexandre Borges é um escritor e argumentista natural de Angra do Heroísmo (1980) e radicado em Lisboa desde 1998. Foi editor de cultura de A Capital, crítico de cinema do jornal “i”, e é, atualmente, diretor criativo de uma agência de comunicação e colunista do Observador.

    Publicou Dez Histórias de Amor em Portugal, Heartbreak Hotel, Todas as Viúvas de Lisboa, Histórias Secretas De Reis Portugueses, O Boato – Introdução Ao Pessimismo, As Vitórias Impossíveis na História de Portugal, Santos e Milagres – Uma História Portuguesa de Deus, e Atenção ao Intervalo entre o Caos e o Comboio. Algumas destas obras constam do Plano Regional de Leitura dos Açores, poesia e prosa.

    Falar com esta outra geração de escritores que se seguiu à minha é um dos meus maiores desafios – e prazeres – pela grande qualidade da sua escrita em praticamente todas as formas e temas abordados.


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    Foste de Angra do Heroísmo para Lisboa muito novo, e todos os estudos superiores foram realizados lá. Como foi essa caminhada em procura de uma formação literária e carreira?

    Foi pacífica de uma forma com que, hoje, só poderia sonhar. Tenho a impressão de que escolhi mais facilmente a minha vida aos 17 anos do que agora, quarentão, escolho um frigorífico. Aquela questão: “o que é que queres ser quando fores grande?”, nunca me atormentou. Em adolescente, já sabia que seria escritor; tudo o resto era secundário a esta finalidade. Tinha a noção de que ninguém vivia dos livros e que, portanto, para pagar a renda, teria de duplicar a escrita num uso mais rentável, a trabalhar em jornais ou na televisão, e que o curso superior também deveria servir esta função: ajudar-me a escrever melhor, ou pelo menos, a pensar. Daí a Filosofia. Tinha uma fé cega de que viveria disso e, até hoje, não me enganei.

    Comecei a escrever, regularmente e de forma remunerada, aos 14 anos, na imprensa açoriana, o que me faz dar agora conta de que, por absurdo que pareça, levo 30 anos de “carreira”. Mas era óbvio que teria mais oportunidades nesta vida à beira-Tejo do que à beira Porto Pipas, por muito que ame o Porto Pipas e a memória dos passeios com o meu avô. E depois, havia uma vontade de mundo. Em 1998, a distância metafórica entre os Açores e Lisboa já não era certamente a mesma que no Gente Feliz com Lágrimas, do João de Melo, ou na Fome, do José Martins Garcia, mas ainda não havia internet nem companhias aéreas low cost. Quando saías, sabias que ias passar a ver a tua família só no Natal e no Verão. Mas havia um gozo enorme nessa emancipação, nesse mergulho no mundo. Ainda por cima, no ano em que Lisboa recebia a Expo e te cruzavas na rua com gente de toda a parte, naquele frisson de fim de século. Foi um momento magnífico para um miúdo de 17 anos, sair de debaixo das saias da mãe para a cidade grande. Tudo o resto decorreu daí.

    Como alguns outros, optaste pelo não regresso definitivo. Fala-me de como pensaste a tua vida a longo prazo.

    Confesso-te que a coisa mais parecida que tive com um plano a longo prazo foi – é – a convicção de que escreverei até ser velhinho ou me mandarem parar. Tive sempre uma confiança cega de que as coisas correriam bem profissionalmente – tão cega como a descrença em vir a ser um “homem de família” (não que não o desejasse, não necessariamente, mas, se elegesse como objectivo fundamental ser pai de família, creio que teria voltado. As cidades grandes não são sítios para criar crianças. Aí, vem-me um receio muito ilhéu). Logo que cheguei a Lisboa, comecei a fazer teatro e a trabalhar na imprensa universitária; a partir daí, uma coisa foi sempre levando a outra: duma revista para a televisão, da televisão para um jornal, dum jornal para outro projecto qualquer. Tudo me pareceu sempre apenas uma modalidade diferente de literatura: para o ecrã, para o palco, para a folha de jornal.

    Claro que as coisas nem sempre correram bem, mas, quando isso aconteceu, a escrita pura esteve sempre lá. No dia em que A Capital fechou e fui para o meu primeiro e, até hoje, único desemprego (os deuses assim o conservem), antes que começasse a desesperar, escrevi as primeiras linhas do meu primeiro romance; no dia em que acabei o romance, comecei um blogue de aforismos que também viria a dar livro. Ao fim de seis meses, voltei ao trabalho “diurno”, com muitas lições de humildade, a escrever telenovelas para a TVI com a mesma seriedade com que trabalhava em programas de autor e documentários para a RTP2, a inventar concursos para o prime time ou a fazer crítica de cinema para intelectuais. Mas os livros, a poesia, o romance, a crónica, foram sempre o que me salvou do vazio, o que deu sentido a tudo. Até hoje. Mesmo que produza muito menos livros do que gostaria, por falta de tempo ou disciplina. É a fé de que ainda se escreverá aquele livro de que sempre nos acreditámos capazes o motor imóvel de tudo.

        A tua poesia e prosa tanto contém a universalidade da tua geração como a recordação numa ilha como a Terceira, uma pequena terra no meio do oceano que só agora começa a ser descoberta por todos os outros. Que relação manténs com outros cá residentes?

    


    D
e facto, durante muito tempo, só sentia necessidade de escrever a olhar para fora. Há dois tipos de artistas: os que escrevem, pintam, compõem, para que o mundo os compreenda, e os que escrevem, pintam, compõem, para compreender o mundo. Sempre me vi no segundo grupo. Fascina-me, sobretudo, a vida multiplicada das cidades e a possibilidade de um Deus, real ou irreal, acontecer no meio delas. Mas, com o passar do tempo, comecei, finalmente, a sentir também a necessidade, a vontade e, acima de tudo, a capacidade de escrever sobre o lugar de onde vim e para o lugar de onde vim. Penso, sinceramente, que um escritor é muito mais a maneira como olha do que aquilo que olha. A perspectiva e não o tema. Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre. Mas, depois de 26 anos de Lisboa, ela também já forjou qualquer coisa bastante no açoriano para que ele consiga olhar a terra-natal como objecto literário; ter alguma coisa, mínima que seja, para lhe dizer.

    De resto, de há alguns anos para cá, tenho tido o privilégio de voltar a trabalhar e a viver momentos muito importantes nos Açores, uns tão difíceis como enterrar amigos, outros tão belos como voltar a escrever especificamente para um público açoriano, apaixonar-me, conhecer e colaborar com pessoas extraordinárias que trabalham hoje nos Açores em literatura, cinema, fotografia, pintura, música, em tantas áreas, com enorme qualidade e, ao mesmo tempo, cheias de mundo e de ilha. Admiro-as profundamente pelo equilíbrio que conseguiram.

    A tua literatura, como a defines em termos temáticos, um comboio em direção contrário à tua real vontade, ou mesmo saudade?

    Obrigado por esta conversa, Vamberto. Está a ser muito importante para mim porque, em cada pergunta, juntas a vida à escrita, que é como elas acontecem.

    Não consigo definir. Não sei de que estilo ou escola sou. Talvez fosse melhor escritor se o fizesse, mas também corria o risco de secar. Sendo-te completamente sincero: penso que haverá poucas pessoas que escrevam mais do que eu. Há 30 anos (como vimos) que os meus dias são passados em frente a um teclado a matraquear crónicas, críticas, guiões, vídeos para clientes – bancos, seguradoras, partidos políticos, marcas de sapatos, tudo o que te passe pela cabeça – e, sempre que possível, peças de teatro, poemas, contos, histórias, ensaios de romance. E, no entanto, frequentemente parece-me que não escrevi nada. Que nada disto fica. Que diluis o teu coração e o teu olhar de poeta em tudo e que isso faz com que tudo seja um bocadinho bom, mas que nada seja realmente extraordinário. Mas lá está: vou continuar até escrever o livro de que estou convencido de ser capaz. Ou que o tribunal me proíba de aproximar a menos de 50 metros de um Word.

    De resto, continuo apaixonado por Lisboa. Mas nada me faz mais feliz nem realizado do que sentir que qualquer coisa que escrevi tocou alguém na Terceira, nas Flores, no Pico, em Santa Maria, em São Miguel (tornei-me açoriano aos 17 anos. Até aí, era só terceirense. É quando vamos embora que ficamos, realmente, dos Açores). Porque, no fim, o que todos queremos é ser amados por quem nos pôs no mundo. Por quem nos viu crescer.

    Portanto, o comboio vai-nos trazendo a casa. E já não tenho dúvidas de que, um dia, será de vez. Por enquanto, simplesmente, é-me mais fácil escrever com semáforos e marquises do outro lado da janela, do que com a majestosa beleza açoriana, que me paralisaria e faria achar fútil qualquer esforço pretensamente criativo.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 27 de dezembro de 2024

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Vasco Pereira da Costa: quem escreve, como escreve e para quem


Na condição de septuagenário, interrogo-me, com espanto, sobre o legado da minha geração.

Vasco Pereira da Costa em conversa sobre a escrita e as suas dúvidas geracionais.


    Caso algum leitor pergunte o que me leva a fazer estas “conversas” com escritores de várias gerações responderei do modo mais simples possível. Eles têm dialogado em direto em vários encontros literários durante anos um pouco por toda a parte, mas queria que os leitores dedicados à nossa literatura de língua portuguesa tivessem uma ideia clara sobre a evolução intelectual, particularmente literária, uma vez mais, que naturalmente sempre acompanhou a nossa História e as nossas circunstâncias que são de séculos – e não de anos ou décadas. Vasco representa para mim, na sua escrita, um símbolo claro dos anos a um tempo de chumbo e liberdade. A memória dos tempos e da caminhada de um povo, dos povos em toda a parte, como já o escrevi muitas vezes, é o tema dominante de toda a grande literatura mundial. Que os açorianos, dentro e fora do arquipélago. e como outros já o disseram muito antes de mim, sempre os levou a produzir uma das grandes literaturas de Portugal e arredores maiores, que são o mundo inteiro. Estão traduzidos em várias línguas, desde o Japão a alguns países europeus, lidos que são ainda por todo o mundo que fala e escreve a língua de Camões. Alguém um dia escreveu sobre estas questões que o território não tem a ver com o mapa. Por outras palavras, a grande literatura sempre nasceu dos então mais recônditos sítios do planeta.

    Eis aqui Vasco Pereira da Costa cujas ilhas tanto estão rodeadas de mar como de terras sem fim. A sua obra foi recentemente mencionada nestas páginas. Resta agora só saber o que move e comove o grande escritor natural de Angra do Heroísmo e residente em Coimbra desde os seus 18 anos de idade, quando ingressou na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra, e mais tarde viria a ser um dos responsáveis pela Direção Regional da Cultura nos Açores.

    Acaba de publicar Os Contos, uma antologia da sua prosa maior, organizada por Telmo R. Nunes.


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    A tua obra literária vem dos anos 70/80 até aos nossos dias. O que é que te motiva para esta implacável e duradoura escrita?

    Incorporei a escrita na minha vida como o filatelista passa horas a olhar para selos de correio. Eu ando à procura daquela história ainda não contada ou daquele verso que requer a palavra exacta. Não é uma motivação implacável que não busca durabilidade, mas que conforta quem se habituou a tratar a literatura como um familiar muito próximo em quem pode confiar e que nunca desiludiu apesar de grandes discussões. Escrever é, pois, um acto voluntarioso ou, como dizia Miguel Torga, um acto ontológico.

    Que leitores tens em mente quando escreves poesia e prosa?

    Não faço a mínima ideia sobre quem irá apropriar-se dos meus textos nem é assunto que me preocupe. Sei, apenas, que não aceitaria qualquer imposição editorial – temática ou temporal: a criação literária assenta na total e irrefragável liberdade de pensamento. Admiro aqueles que conseguem auferir proventos suficientes através do que escrevem, se bem que, nos dias que correm, muitos produtos literários são bafejados por campanhas de marketing. Basta atentar na profusão de escritores que, concomitantemente, são ledores de telejornais. Felizmente, tenho fugido, por feitio e por orgulho do espaço mediático porque prezo muito a minha intimidade e não preciso da escrita para a minha sobrevivência. Porém, é uma tarefa que requer trabalho paciente, minucioso e persistente. Ocorre-me, com frequência, um conto de Daudet – O Homem com cérebro de oiro – que vai retirando pedaços desse metal precioso até que, no final, só consegue umas pepitas ensanguentadas: os dicionários não são mais do que esses pedacinhos linfáticos a que o escritor tem que dar nova vida. Pode dar-lhes vilezas e virtudes, viço ou podridão, ódio ou amor, paz ou guerra, heroísmo ou cobardia, singeleza ou complexidade, humanidade ou bestialidade, grandeza ou opróbrio, simpatia ou repulsa. Esse é o grande poder conferido ao acto da escrita, o que nem sempre se consegue, pois há muita emenda e muito papel rasgado. E convém, sempre, deixar em repouso esse trabalho para que possa perceber-se, passado um tempo bastante, se ainda mantém intactas as suas qualidades funcionais e estéticas. O leitor tem que ser respeitado e não podemos dar-lhe insignificantes, gastas, aleatórias, inúteis e medrosas estupidezes nem bugigangas decorativas. Qualquer texto – literário – é sempre um desafio lançado a quem o lerá. E o escritor não será, então, nunca mais, o seu dono e senhor; o leitor irá apropriar-se, para sempre, do que leu, gerando o seu próprio texto.

    Anoto, no entanto, esta contradição: nunca se editou tanto em formato de papel ou digitalmente, mas os índices de leitura continuam muito baixos, apesar de as bibliotecas públicas e escolares proliferarem – e bem!, porque o panorama seria mais devastador e inquietante.

    


    O
humor e, de certo modo, a sátira, é uma constante particularmente na tua prosa. É este o teu modo de dizer coisas sérias com um riso, coisas que te preocupam e movem a tua literatura no sentido de levar em conta a tua sociedade nas ilhas e no continente?

    A ironia advém do instante imprevisível em que se intromete na escrita. Afinal, todos podemos ser tocados pela banalidade e pelo ridículo que carecem de distanciamento crítico; pela afeição que tange a condição humana; pelas inquietações que nos colocam numa ambiência que roça o trágico e que apetece desfazer. Qualquer escritor apenas repete aquilo que já foi escrito desde o tempo em que o homem, animal absoluto e esquisito, descobriu que tinha capacidade de exprimir sentimentos os mais diversos.

    Como vês ou entendes o tempo do nosso país na atualidade? A literatura ainda mantém um papel central no nosso pensamento e atitude, digamos assim, perante tudo e todos que nos rodeiam?

    Na condição de septuagenário, interrogo-me, com espanto, sobre o legado da minha geração. Proclamámos que we shall overcome same day; que all you need is love; que o 25 de Abril minaria irremediavelmente os fascismos. Nada disto aconteceu! Talvez seja tempo de pôr de novo um cravo vermelho ao peito e de berrar, outra vez, contra os imperialismos todos.

    Houve qualquer coisa que correu mal. Ocorre-me, que nos anos oitenta do século passado, houve uma corrente nefelibata que prenunciava uma sociedade de lazeres: com as tecnologias emergentes as pessoas iriam para a reforma mais cedo e haveria necessidade de preencher a sua qualidade de vida com ócios culturais.

    Para tanto, eram necessários equipamentos ajardinamentos comunitários, formação de técnicos auxiliares para as artes performativas, actores, artistas, agentes…Ora, nada disto aconteceu: aumentou a idade da reforma, a economia contraiu, a pobreza aumentou, os desníveis sociais acentuaram-se. E, agora, regressam os populismos: Le Pen, Bolsonaro, Trump, Venturinhas e tantos outros salvadores que nos apresentam um cenário muito próximo dos tempos de Salazar, de Franco, de Mussolini, de Hitler. Os gloriosos tempos da paz europeia, humanista, fraterna e igualitária está a desvanecer-se. Os tempos prenunciam uma guerra temível e um descontrolo do mundo mercê das ganâncias financeiras que não têm rosto nem morada certa. E a classe política deste mundo foi assaltada por medíocres e iletrados. Temo, oh sim!, pelos meus filhos e pelos meus netos, quero dizer pelos filhos e netos continuadores da vida no nosso planeta.

E agora, Vamberto?

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 13 de dezembro de 2024



sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Renata Correia Botelho: do que fala quando fala de poesia


Este livro “nasceu” de uma morte que me abalou imenso, da cantora Lhasa de Sela, que fora (e ainda é) a minha principal banda sonora.


    Renata Correia Botelho é uma das nossas mais distinta poetas. Nasceu em Ponta Delgada em 1977, onde vive e é Psicóloga Clínica. Formada pela Universidade do Porto, fez ainda uma pós-graduação em Comunicação e Cultura na Universidade dos Açores. Para além de traduções de Margarite Yourcenar e de Hiromi Kawakami para a editora Relógio D’Água, publicou diversos livros de poesia: Avulsos (separata da Revista Magma, Lisboa, 2005); Língua Morta, Lisboa, 2010); Um Circo No Nevoeiro (Averno, Lisboa, 2009); Moinhos, Belo Horizonte, 2020) e small song (Averno, 2010; Alambique, 2015). Colabora também em diversas revista de variadas expressões artísticas. A nossa breve conversa aborda um pouco de toda a sua atividade literária e presença esporádica em diversos eventos literários.

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    Os teus poemas de small song é um livro marcante na nova poesia de língua portuguesa. Logo após a sua publicação estavas por toda a parte em sessões literárias. Fala-me dessa tua experiência como poeta de imediato reconhecida entre os teus leitores.


    E
screver
small song foi uma experiência singular. É certo que o são todos os livros, e provavelmente todos os poemas dentro deles, mas este resultou numa vivência extraordinária – que nada teve a ver com as sessões literárias e as recensões que lhe sucederam. Lembro aqui, porque espelha exatamente o que se passou com este livro, uma frase do meu querido amigo e editor Manuel de Freitas sobre o propósito da poesia: "A utilidade fundamental da poesia consiste, para mim, na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras". Foi exatamente assim. Este livro “nasceu” de uma morte que me abalou imenso, da cantora Lhasa de Sela, que fora (e ainda é) a minha principal banda sonora. Com a voz da Lhasa vivi momentos muito marcantes. O seu desaparecimento teve um impacto brutal em mim e senti uma necessidade urgente de escrever sobre ela. Aliás, small song é o nome de uma das suas canções, pequenina, perfeita, que ecoa ainda tanto na minha cabeça. Ao mesmo tempo que escrevia, tentei contatar a sua família e cheguei à Sky, uma das suas irmãs, que me abriu de imediato as portas de casa (neste caso, de um conjunto de roulottes, no meio da neve, reservadas a artistas circenses, uma vez que a família se dedica profissionalmente ao circo contemporâneo). E lá fui eu para França, várias vezes, para uma pequena aldeia chamada Montréal en Bourgogne, conhecer o clã de Sela. Cada uma daquelas pessoas (eu incluída) fazia o luto à sua maneira e à sua escala, mas tenho a certeza de que nos ajudámos mutuamente. Foram momentos únicos e cheios de significado.

    Para além deste caminho mágico, o livro trilhou outros rumos surpreendentes. Serviu de base, por exemplo, ao primeiro espetáculo do magnífico Núcleo de Artes Performativas 37.25, o que me encheu de alegria. E também deste livro (e de um anterior) nasceram letras para A Naifa, um grupo de referência, pelo menos para mim, no panorama musical português.

    Em resumo: é certo que o livro foi muito bem recebido pela crítica (um pouco à semelhança dos anteriores, na verdade), o que obviamente me deixou contente. Mas o fundamental da sua existência foi tudo isto que descrevi, os rumos extraordinários que tomou, levando-me a outras pessoas, outros lugares, outras linguagens. Acho, por isso, que o Manuel de Freitas tem toda a razão. Este é o principal (talvez o único) propósito da poesia.


Nasceste e viveste sempre à “sombra” de um grande poeta, o teu pai Emanuel Jorge Botelho. Até que ponto essa vivência te libertou – ou, vamos lá dizer assim, te inibiu?

    Tive o privilégio de nascer e crescer numa casa forrada de livros. Os livros faziam parte da nossa vida familiar diária. Lembro-me de ser muito pequenina e passar horas a olhar as lombadas. Há imensos livros cujo título e autor conheço perfeitamente, sei a cor e o grafismo da lombada, mas, para ser franca, nunca os li. No entanto, sinto uma imensa intimidade com eles, porque moravam connosco. Dizer-se que vivi “à sombra” do meu pai parece-me exagerado. Trilhámos, aliás, caminhos muito distintos, quer na escrita, quer na publicação, quer mesmo na literatura que nos interessa. Ainda hoje é assim. Somos pessoas muito diferentes (talvez, com o passar dos anos, um pouco menos diferentes). Agora, de orgulho estou eu cheia. O meu pai é um poeta maior, um dos mais importantes poetas portugueses do último meio século, disso não tenho qualquer dúvida. O que não é coisa pouca. Mas nunca isso pesou na minha relação com a poesia, até porque a poesia não é, ao nível familiar, um exclusivo do meu pai. A minha mãe tem uma forma de amar absolutamente poética, o abraço do meu irmão é um poema luminoso, a chegada das minhas sobrinhas foi uma explosão de versos livres e belos a que regresso todos os dias. Para além de outras pessoas (amigos, companheiros), mais ou menos íntimas, que trouxeram muita poesia aos meus dias. E os gatos, movendo-se pela casa com um lirismo de que só eles são capazes. Nunca me canso de apreciar a sua delicadeza, a lentidão do sono a abater-se sobre eles, o seu olhar seguro e tranquilo fitando o meu, tantas vezes tolhido pelo medo e pela angústia. Tudo isto teve uma influência determinante na minha escrita – que é o mesmo que dizer, na minha vida.

    Portanto, e regressando à pergunta, ser filha do Emanuel Jorge Botelho nunca me inibiu nem me libertou, integra serenamente a matéria de que sou feita. Ser sua filha só me trouxe luz, nunca sombra.

    Uma coisa, no entanto, é certa: o meu pai é o meu primeiro crítico. Para o bem e para o mal. E a opinião dele, curiosamente cada vez mais coincidente com a minha, é preponderante para a sobrevivência, ou não, de um texto. Aí sim, sou uma sortuda.

    O ser uma psicóloga que influência tem na tua escrita direta e pública, cada palavra carregada de significações múltiplas para os teus leitores?


    De forma direta, julgo que não. Pelo menos, nunca fiz, conscientemente, essa associação. Todavia, o exercício da psicologia, sobretudo no contexto em que trabalho desde o início da carreira, com pessoas muito doentes e frágeis, famílias destroçadas, vidas e sonhos que ficaram por cumprir, ter-me-á dado, quero crer, uma visão mais profunda do Outro. Desde criança que sinto a impossibilidade (prática e metafísica) da minha existência isolada, e talvez tenha sido isso que me encaminhou para a Psicologia, a par de uma grande curiosidade sobre os mecanismos da mente humana. O Mário de Sá Carneiro tem dois versos, que li quando era muito jovem, e que sempre achei que resumiam cristalinamente este sentimento: “Eu não sou eu nem sou o outro / Sou qualquer coisa de intermédio”. A Adriana Calcanhotto já os cantou. Essa imersão permanente do Outro em nós, e vice-versa, essa existência indivisa, que norteia necessariamente a minha profissão, poderá ser vertida para a poesia, mesmo que num plano mais inconsciente.

    Estou, aliás, absolutamente convencida de que a poesia nasce num plano inconsciente e subterrâneo, onde vivem os Rothkos que vi em Londres e os impressionistas em Paris, Marguerite Youcernar (cujo livro de entrevistas a Matthieu Galey tive o privilégio de traduzir para a Relógio D’Água, possivelmente a coisa mais bonita que fiz na vida) a fazer-nos respirar junto de Adriano, a voz da Lhasa ou do Nick Drake, um grupo de pessoas abraçadas a cantar a Grândola, o galope de um cavalo livre, a náusea que me provoca a tortura de uma tourada (agora, com a descida do IVA para esta atividade de pura crueldade, a barbárie até ficou mais barata, imagine-se), a desolação de uma pomba morta na estrada, o silêncio das casa à noite, as camélias e as estrelas cadentes da Achadinha… e também – provavelmente – as dores e as pequenas alegrias que acompanho diariamente na minha vida profissional. É de toda essa massa imensa e submersa que nasce a poesia, mesmo que verse sobre outros assuntos quaisquer. Por isso, não sou capaz de estabelecer relação entre a minha escrita e o facto de ser psicóloga, mas imagino que ela, algures, exista.


    

    Fala-me do teu processo de escrita poética. Sai de repente ou cada palavra e verso têm de ser pensados durante um tempo maior?


    Escrever é um grande mistério. Tal como já referi, e acho que na pergunta anterior respondi um pouco a esta, sinto que a escrita surge a um nível subterrâneo da nossa mente. Pode haver um trigger, qualquer coisa consciente (que vemos, ouvimos, sentimos) que a ponha em marcha, mas ela nasce noutro “sítio”. É desse sítio que vêm à tona as palavras que dão vida ao primeiro esboço do texto. Depois subimos ao patamar da consciência, e aí depura-se o poema, trabalha-se afincadamente cada verso, cada espaço em branco, cada vírgula, as maiúsculas e as minúsculas, as palavras que queremos deixar e as que devem regressar ao subsolo. Mesmo quando se escreve “por encomenda”, ou seja, para um número coletivo ou para uma revista literária, por vezes com tema previamente definido e sempre com prazos para cumprir, é o mesmo processo. Pode é, simplesmente, não acontecer. E aí falhamos o compromisso, o que é uma chatice.

    Além do mais, não acredito em boa escrita sem muito trabalho sobre o texto. Tal como não acredito que se escreva com alguma qualidade sem ler muito. Ler é como a água, um bem preciosíssimo. Para escrever, mas sobretudo para que viver seja um pouco mais possível.


No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 6 de dezembro de 2024