quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Conversa com Alexandre Borges: Prosa, Poesia e Televisão

 

Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre.

Alexandre Borges

    Alexandre Borges é um escritor e argumentista natural de Angra do Heroísmo (1980) e radicado em Lisboa desde 1998. Foi editor de cultura de A Capital, crítico de cinema do jornal “i”, e é, atualmente, diretor criativo de uma agência de comunicação e colunista do Observador.

    Publicou Dez Histórias de Amor em Portugal, Heartbreak Hotel, Todas as Viúvas de Lisboa, Histórias Secretas De Reis Portugueses, O Boato – Introdução Ao Pessimismo, As Vitórias Impossíveis na História de Portugal, Santos e Milagres – Uma História Portuguesa de Deus, e Atenção ao Intervalo entre o Caos e o Comboio. Algumas destas obras constam do Plano Regional de Leitura dos Açores, poesia e prosa.

    Falar com esta outra geração de escritores que se seguiu à minha é um dos meus maiores desafios – e prazeres – pela grande qualidade da sua escrita em praticamente todas as formas e temas abordados.


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    Foste de Angra do Heroísmo para Lisboa muito novo, e todos os estudos superiores foram realizados lá. Como foi essa caminhada em procura de uma formação literária e carreira?

    Foi pacífica de uma forma com que, hoje, só poderia sonhar. Tenho a impressão de que escolhi mais facilmente a minha vida aos 17 anos do que agora, quarentão, escolho um frigorífico. Aquela questão: “o que é que queres ser quando fores grande?”, nunca me atormentou. Em adolescente, já sabia que seria escritor; tudo o resto era secundário a esta finalidade. Tinha a noção de que ninguém vivia dos livros e que, portanto, para pagar a renda, teria de duplicar a escrita num uso mais rentável, a trabalhar em jornais ou na televisão, e que o curso superior também deveria servir esta função: ajudar-me a escrever melhor, ou pelo menos, a pensar. Daí a Filosofia. Tinha uma fé cega de que viveria disso e, até hoje, não me enganei.

    Comecei a escrever, regularmente e de forma remunerada, aos 14 anos, na imprensa açoriana, o que me faz dar agora conta de que, por absurdo que pareça, levo 30 anos de “carreira”. Mas era óbvio que teria mais oportunidades nesta vida à beira-Tejo do que à beira Porto Pipas, por muito que ame o Porto Pipas e a memória dos passeios com o meu avô. E depois, havia uma vontade de mundo. Em 1998, a distância metafórica entre os Açores e Lisboa já não era certamente a mesma que no Gente Feliz com Lágrimas, do João de Melo, ou na Fome, do José Martins Garcia, mas ainda não havia internet nem companhias aéreas low cost. Quando saías, sabias que ias passar a ver a tua família só no Natal e no Verão. Mas havia um gozo enorme nessa emancipação, nesse mergulho no mundo. Ainda por cima, no ano em que Lisboa recebia a Expo e te cruzavas na rua com gente de toda a parte, naquele frisson de fim de século. Foi um momento magnífico para um miúdo de 17 anos, sair de debaixo das saias da mãe para a cidade grande. Tudo o resto decorreu daí.

    Como alguns outros, optaste pelo não regresso definitivo. Fala-me de como pensaste a tua vida a longo prazo.

    Confesso-te que a coisa mais parecida que tive com um plano a longo prazo foi – é – a convicção de que escreverei até ser velhinho ou me mandarem parar. Tive sempre uma confiança cega de que as coisas correriam bem profissionalmente – tão cega como a descrença em vir a ser um “homem de família” (não que não o desejasse, não necessariamente, mas, se elegesse como objectivo fundamental ser pai de família, creio que teria voltado. As cidades grandes não são sítios para criar crianças. Aí, vem-me um receio muito ilhéu). Logo que cheguei a Lisboa, comecei a fazer teatro e a trabalhar na imprensa universitária; a partir daí, uma coisa foi sempre levando a outra: duma revista para a televisão, da televisão para um jornal, dum jornal para outro projecto qualquer. Tudo me pareceu sempre apenas uma modalidade diferente de literatura: para o ecrã, para o palco, para a folha de jornal.

    Claro que as coisas nem sempre correram bem, mas, quando isso aconteceu, a escrita pura esteve sempre lá. No dia em que A Capital fechou e fui para o meu primeiro e, até hoje, único desemprego (os deuses assim o conservem), antes que começasse a desesperar, escrevi as primeiras linhas do meu primeiro romance; no dia em que acabei o romance, comecei um blogue de aforismos que também viria a dar livro. Ao fim de seis meses, voltei ao trabalho “diurno”, com muitas lições de humildade, a escrever telenovelas para a TVI com a mesma seriedade com que trabalhava em programas de autor e documentários para a RTP2, a inventar concursos para o prime time ou a fazer crítica de cinema para intelectuais. Mas os livros, a poesia, o romance, a crónica, foram sempre o que me salvou do vazio, o que deu sentido a tudo. Até hoje. Mesmo que produza muito menos livros do que gostaria, por falta de tempo ou disciplina. É a fé de que ainda se escreverá aquele livro de que sempre nos acreditámos capazes o motor imóvel de tudo.

        A tua poesia e prosa tanto contém a universalidade da tua geração como a recordação numa ilha como a Terceira, uma pequena terra no meio do oceano que só agora começa a ser descoberta por todos os outros. Que relação manténs com outros cá residentes?

    


    D
e facto, durante muito tempo, só sentia necessidade de escrever a olhar para fora. Há dois tipos de artistas: os que escrevem, pintam, compõem, para que o mundo os compreenda, e os que escrevem, pintam, compõem, para compreender o mundo. Sempre me vi no segundo grupo. Fascina-me, sobretudo, a vida multiplicada das cidades e a possibilidade de um Deus, real ou irreal, acontecer no meio delas. Mas, com o passar do tempo, comecei, finalmente, a sentir também a necessidade, a vontade e, acima de tudo, a capacidade de escrever sobre o lugar de onde vim e para o lugar de onde vim. Penso, sinceramente, que um escritor é muito mais a maneira como olha do que aquilo que olha. A perspectiva e não o tema. Um escritor açoriano será sempre um escritor açoriano, mesmo que nunca produza uma linha sobre baleias, a bruma ou a ilha em frente; foi forjado na açorianidade e isso fará dele quem é para sempre. Mas, depois de 26 anos de Lisboa, ela também já forjou qualquer coisa bastante no açoriano para que ele consiga olhar a terra-natal como objecto literário; ter alguma coisa, mínima que seja, para lhe dizer.

    De resto, de há alguns anos para cá, tenho tido o privilégio de voltar a trabalhar e a viver momentos muito importantes nos Açores, uns tão difíceis como enterrar amigos, outros tão belos como voltar a escrever especificamente para um público açoriano, apaixonar-me, conhecer e colaborar com pessoas extraordinárias que trabalham hoje nos Açores em literatura, cinema, fotografia, pintura, música, em tantas áreas, com enorme qualidade e, ao mesmo tempo, cheias de mundo e de ilha. Admiro-as profundamente pelo equilíbrio que conseguiram.

    A tua literatura, como a defines em termos temáticos, um comboio em direção contrário à tua real vontade, ou mesmo saudade?

    Obrigado por esta conversa, Vamberto. Está a ser muito importante para mim porque, em cada pergunta, juntas a vida à escrita, que é como elas acontecem.

    Não consigo definir. Não sei de que estilo ou escola sou. Talvez fosse melhor escritor se o fizesse, mas também corria o risco de secar. Sendo-te completamente sincero: penso que haverá poucas pessoas que escrevam mais do que eu. Há 30 anos (como vimos) que os meus dias são passados em frente a um teclado a matraquear crónicas, críticas, guiões, vídeos para clientes – bancos, seguradoras, partidos políticos, marcas de sapatos, tudo o que te passe pela cabeça – e, sempre que possível, peças de teatro, poemas, contos, histórias, ensaios de romance. E, no entanto, frequentemente parece-me que não escrevi nada. Que nada disto fica. Que diluis o teu coração e o teu olhar de poeta em tudo e que isso faz com que tudo seja um bocadinho bom, mas que nada seja realmente extraordinário. Mas lá está: vou continuar até escrever o livro de que estou convencido de ser capaz. Ou que o tribunal me proíba de aproximar a menos de 50 metros de um Word.

    De resto, continuo apaixonado por Lisboa. Mas nada me faz mais feliz nem realizado do que sentir que qualquer coisa que escrevi tocou alguém na Terceira, nas Flores, no Pico, em Santa Maria, em São Miguel (tornei-me açoriano aos 17 anos. Até aí, era só terceirense. É quando vamos embora que ficamos, realmente, dos Açores). Porque, no fim, o que todos queremos é ser amados por quem nos pôs no mundo. Por quem nos viu crescer.

    Portanto, o comboio vai-nos trazendo a casa. E já não tenho dúvidas de que, um dia, será de vez. Por enquanto, simplesmente, é-me mais fácil escrever com semáforos e marquises do outro lado da janela, do que com a majestosa beleza açoriana, que me paralisaria e faria achar fútil qualquer esforço pretensamente criativo.

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 27 de dezembro de 2024

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Vasco Pereira da Costa: quem escreve, como escreve e para quem


Na condição de septuagenário, interrogo-me, com espanto, sobre o legado da minha geração.

Vasco Pereira da Costa em conversa sobre a escrita e as suas dúvidas geracionais.


    Caso algum leitor pergunte o que me leva a fazer estas “conversas” com escritores de várias gerações responderei do modo mais simples possível. Eles têm dialogado em direto em vários encontros literários durante anos um pouco por toda a parte, mas queria que os leitores dedicados à nossa literatura de língua portuguesa tivessem uma ideia clara sobre a evolução intelectual, particularmente literária, uma vez mais, que naturalmente sempre acompanhou a nossa História e as nossas circunstâncias que são de séculos – e não de anos ou décadas. Vasco representa para mim, na sua escrita, um símbolo claro dos anos a um tempo de chumbo e liberdade. A memória dos tempos e da caminhada de um povo, dos povos em toda a parte, como já o escrevi muitas vezes, é o tema dominante de toda a grande literatura mundial. Que os açorianos, dentro e fora do arquipélago. e como outros já o disseram muito antes de mim, sempre os levou a produzir uma das grandes literaturas de Portugal e arredores maiores, que são o mundo inteiro. Estão traduzidos em várias línguas, desde o Japão a alguns países europeus, lidos que são ainda por todo o mundo que fala e escreve a língua de Camões. Alguém um dia escreveu sobre estas questões que o território não tem a ver com o mapa. Por outras palavras, a grande literatura sempre nasceu dos então mais recônditos sítios do planeta.

    Eis aqui Vasco Pereira da Costa cujas ilhas tanto estão rodeadas de mar como de terras sem fim. A sua obra foi recentemente mencionada nestas páginas. Resta agora só saber o que move e comove o grande escritor natural de Angra do Heroísmo e residente em Coimbra desde os seus 18 anos de idade, quando ingressou na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra, e mais tarde viria a ser um dos responsáveis pela Direção Regional da Cultura nos Açores.

    Acaba de publicar Os Contos, uma antologia da sua prosa maior, organizada por Telmo R. Nunes.


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    A tua obra literária vem dos anos 70/80 até aos nossos dias. O que é que te motiva para esta implacável e duradoura escrita?

    Incorporei a escrita na minha vida como o filatelista passa horas a olhar para selos de correio. Eu ando à procura daquela história ainda não contada ou daquele verso que requer a palavra exacta. Não é uma motivação implacável que não busca durabilidade, mas que conforta quem se habituou a tratar a literatura como um familiar muito próximo em quem pode confiar e que nunca desiludiu apesar de grandes discussões. Escrever é, pois, um acto voluntarioso ou, como dizia Miguel Torga, um acto ontológico.

    Que leitores tens em mente quando escreves poesia e prosa?

    Não faço a mínima ideia sobre quem irá apropriar-se dos meus textos nem é assunto que me preocupe. Sei, apenas, que não aceitaria qualquer imposição editorial – temática ou temporal: a criação literária assenta na total e irrefragável liberdade de pensamento. Admiro aqueles que conseguem auferir proventos suficientes através do que escrevem, se bem que, nos dias que correm, muitos produtos literários são bafejados por campanhas de marketing. Basta atentar na profusão de escritores que, concomitantemente, são ledores de telejornais. Felizmente, tenho fugido, por feitio e por orgulho do espaço mediático porque prezo muito a minha intimidade e não preciso da escrita para a minha sobrevivência. Porém, é uma tarefa que requer trabalho paciente, minucioso e persistente. Ocorre-me, com frequência, um conto de Daudet – O Homem com cérebro de oiro – que vai retirando pedaços desse metal precioso até que, no final, só consegue umas pepitas ensanguentadas: os dicionários não são mais do que esses pedacinhos linfáticos a que o escritor tem que dar nova vida. Pode dar-lhes vilezas e virtudes, viço ou podridão, ódio ou amor, paz ou guerra, heroísmo ou cobardia, singeleza ou complexidade, humanidade ou bestialidade, grandeza ou opróbrio, simpatia ou repulsa. Esse é o grande poder conferido ao acto da escrita, o que nem sempre se consegue, pois há muita emenda e muito papel rasgado. E convém, sempre, deixar em repouso esse trabalho para que possa perceber-se, passado um tempo bastante, se ainda mantém intactas as suas qualidades funcionais e estéticas. O leitor tem que ser respeitado e não podemos dar-lhe insignificantes, gastas, aleatórias, inúteis e medrosas estupidezes nem bugigangas decorativas. Qualquer texto – literário – é sempre um desafio lançado a quem o lerá. E o escritor não será, então, nunca mais, o seu dono e senhor; o leitor irá apropriar-se, para sempre, do que leu, gerando o seu próprio texto.

    Anoto, no entanto, esta contradição: nunca se editou tanto em formato de papel ou digitalmente, mas os índices de leitura continuam muito baixos, apesar de as bibliotecas públicas e escolares proliferarem – e bem!, porque o panorama seria mais devastador e inquietante.

    


    O
humor e, de certo modo, a sátira, é uma constante particularmente na tua prosa. É este o teu modo de dizer coisas sérias com um riso, coisas que te preocupam e movem a tua literatura no sentido de levar em conta a tua sociedade nas ilhas e no continente?

    A ironia advém do instante imprevisível em que se intromete na escrita. Afinal, todos podemos ser tocados pela banalidade e pelo ridículo que carecem de distanciamento crítico; pela afeição que tange a condição humana; pelas inquietações que nos colocam numa ambiência que roça o trágico e que apetece desfazer. Qualquer escritor apenas repete aquilo que já foi escrito desde o tempo em que o homem, animal absoluto e esquisito, descobriu que tinha capacidade de exprimir sentimentos os mais diversos.

    Como vês ou entendes o tempo do nosso país na atualidade? A literatura ainda mantém um papel central no nosso pensamento e atitude, digamos assim, perante tudo e todos que nos rodeiam?

    Na condição de septuagenário, interrogo-me, com espanto, sobre o legado da minha geração. Proclamámos que we shall overcome same day; que all you need is love; que o 25 de Abril minaria irremediavelmente os fascismos. Nada disto aconteceu! Talvez seja tempo de pôr de novo um cravo vermelho ao peito e de berrar, outra vez, contra os imperialismos todos.

    Houve qualquer coisa que correu mal. Ocorre-me, que nos anos oitenta do século passado, houve uma corrente nefelibata que prenunciava uma sociedade de lazeres: com as tecnologias emergentes as pessoas iriam para a reforma mais cedo e haveria necessidade de preencher a sua qualidade de vida com ócios culturais.

    Para tanto, eram necessários equipamentos ajardinamentos comunitários, formação de técnicos auxiliares para as artes performativas, actores, artistas, agentes…Ora, nada disto aconteceu: aumentou a idade da reforma, a economia contraiu, a pobreza aumentou, os desníveis sociais acentuaram-se. E, agora, regressam os populismos: Le Pen, Bolsonaro, Trump, Venturinhas e tantos outros salvadores que nos apresentam um cenário muito próximo dos tempos de Salazar, de Franco, de Mussolini, de Hitler. Os gloriosos tempos da paz europeia, humanista, fraterna e igualitária está a desvanecer-se. Os tempos prenunciam uma guerra temível e um descontrolo do mundo mercê das ganâncias financeiras que não têm rosto nem morada certa. E a classe política deste mundo foi assaltada por medíocres e iletrados. Temo, oh sim!, pelos meus filhos e pelos meus netos, quero dizer pelos filhos e netos continuadores da vida no nosso planeta.

E agora, Vamberto?

No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 13 de dezembro de 2024



sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Renata Correia Botelho: do que fala quando fala de poesia


Este livro “nasceu” de uma morte que me abalou imenso, da cantora Lhasa de Sela, que fora (e ainda é) a minha principal banda sonora.


    Renata Correia Botelho é uma das nossas mais distinta poetas. Nasceu em Ponta Delgada em 1977, onde vive e é Psicóloga Clínica. Formada pela Universidade do Porto, fez ainda uma pós-graduação em Comunicação e Cultura na Universidade dos Açores. Para além de traduções de Margarite Yourcenar e de Hiromi Kawakami para a editora Relógio D’Água, publicou diversos livros de poesia: Avulsos (separata da Revista Magma, Lisboa, 2005); Língua Morta, Lisboa, 2010); Um Circo No Nevoeiro (Averno, Lisboa, 2009); Moinhos, Belo Horizonte, 2020) e small song (Averno, 2010; Alambique, 2015). Colabora também em diversas revista de variadas expressões artísticas. A nossa breve conversa aborda um pouco de toda a sua atividade literária e presença esporádica em diversos eventos literários.

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    Os teus poemas de small song é um livro marcante na nova poesia de língua portuguesa. Logo após a sua publicação estavas por toda a parte em sessões literárias. Fala-me dessa tua experiência como poeta de imediato reconhecida entre os teus leitores.


    E
screver
small song foi uma experiência singular. É certo que o são todos os livros, e provavelmente todos os poemas dentro deles, mas este resultou numa vivência extraordinária – que nada teve a ver com as sessões literárias e as recensões que lhe sucederam. Lembro aqui, porque espelha exatamente o que se passou com este livro, uma frase do meu querido amigo e editor Manuel de Freitas sobre o propósito da poesia: "A utilidade fundamental da poesia consiste, para mim, na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras". Foi exatamente assim. Este livro “nasceu” de uma morte que me abalou imenso, da cantora Lhasa de Sela, que fora (e ainda é) a minha principal banda sonora. Com a voz da Lhasa vivi momentos muito marcantes. O seu desaparecimento teve um impacto brutal em mim e senti uma necessidade urgente de escrever sobre ela. Aliás, small song é o nome de uma das suas canções, pequenina, perfeita, que ecoa ainda tanto na minha cabeça. Ao mesmo tempo que escrevia, tentei contatar a sua família e cheguei à Sky, uma das suas irmãs, que me abriu de imediato as portas de casa (neste caso, de um conjunto de roulottes, no meio da neve, reservadas a artistas circenses, uma vez que a família se dedica profissionalmente ao circo contemporâneo). E lá fui eu para França, várias vezes, para uma pequena aldeia chamada Montréal en Bourgogne, conhecer o clã de Sela. Cada uma daquelas pessoas (eu incluída) fazia o luto à sua maneira e à sua escala, mas tenho a certeza de que nos ajudámos mutuamente. Foram momentos únicos e cheios de significado.

    Para além deste caminho mágico, o livro trilhou outros rumos surpreendentes. Serviu de base, por exemplo, ao primeiro espetáculo do magnífico Núcleo de Artes Performativas 37.25, o que me encheu de alegria. E também deste livro (e de um anterior) nasceram letras para A Naifa, um grupo de referência, pelo menos para mim, no panorama musical português.

    Em resumo: é certo que o livro foi muito bem recebido pela crítica (um pouco à semelhança dos anteriores, na verdade), o que obviamente me deixou contente. Mas o fundamental da sua existência foi tudo isto que descrevi, os rumos extraordinários que tomou, levando-me a outras pessoas, outros lugares, outras linguagens. Acho, por isso, que o Manuel de Freitas tem toda a razão. Este é o principal (talvez o único) propósito da poesia.


Nasceste e viveste sempre à “sombra” de um grande poeta, o teu pai Emanuel Jorge Botelho. Até que ponto essa vivência te libertou – ou, vamos lá dizer assim, te inibiu?

    Tive o privilégio de nascer e crescer numa casa forrada de livros. Os livros faziam parte da nossa vida familiar diária. Lembro-me de ser muito pequenina e passar horas a olhar as lombadas. Há imensos livros cujo título e autor conheço perfeitamente, sei a cor e o grafismo da lombada, mas, para ser franca, nunca os li. No entanto, sinto uma imensa intimidade com eles, porque moravam connosco. Dizer-se que vivi “à sombra” do meu pai parece-me exagerado. Trilhámos, aliás, caminhos muito distintos, quer na escrita, quer na publicação, quer mesmo na literatura que nos interessa. Ainda hoje é assim. Somos pessoas muito diferentes (talvez, com o passar dos anos, um pouco menos diferentes). Agora, de orgulho estou eu cheia. O meu pai é um poeta maior, um dos mais importantes poetas portugueses do último meio século, disso não tenho qualquer dúvida. O que não é coisa pouca. Mas nunca isso pesou na minha relação com a poesia, até porque a poesia não é, ao nível familiar, um exclusivo do meu pai. A minha mãe tem uma forma de amar absolutamente poética, o abraço do meu irmão é um poema luminoso, a chegada das minhas sobrinhas foi uma explosão de versos livres e belos a que regresso todos os dias. Para além de outras pessoas (amigos, companheiros), mais ou menos íntimas, que trouxeram muita poesia aos meus dias. E os gatos, movendo-se pela casa com um lirismo de que só eles são capazes. Nunca me canso de apreciar a sua delicadeza, a lentidão do sono a abater-se sobre eles, o seu olhar seguro e tranquilo fitando o meu, tantas vezes tolhido pelo medo e pela angústia. Tudo isto teve uma influência determinante na minha escrita – que é o mesmo que dizer, na minha vida.

    Portanto, e regressando à pergunta, ser filha do Emanuel Jorge Botelho nunca me inibiu nem me libertou, integra serenamente a matéria de que sou feita. Ser sua filha só me trouxe luz, nunca sombra.

    Uma coisa, no entanto, é certa: o meu pai é o meu primeiro crítico. Para o bem e para o mal. E a opinião dele, curiosamente cada vez mais coincidente com a minha, é preponderante para a sobrevivência, ou não, de um texto. Aí sim, sou uma sortuda.

    O ser uma psicóloga que influência tem na tua escrita direta e pública, cada palavra carregada de significações múltiplas para os teus leitores?


    De forma direta, julgo que não. Pelo menos, nunca fiz, conscientemente, essa associação. Todavia, o exercício da psicologia, sobretudo no contexto em que trabalho desde o início da carreira, com pessoas muito doentes e frágeis, famílias destroçadas, vidas e sonhos que ficaram por cumprir, ter-me-á dado, quero crer, uma visão mais profunda do Outro. Desde criança que sinto a impossibilidade (prática e metafísica) da minha existência isolada, e talvez tenha sido isso que me encaminhou para a Psicologia, a par de uma grande curiosidade sobre os mecanismos da mente humana. O Mário de Sá Carneiro tem dois versos, que li quando era muito jovem, e que sempre achei que resumiam cristalinamente este sentimento: “Eu não sou eu nem sou o outro / Sou qualquer coisa de intermédio”. A Adriana Calcanhotto já os cantou. Essa imersão permanente do Outro em nós, e vice-versa, essa existência indivisa, que norteia necessariamente a minha profissão, poderá ser vertida para a poesia, mesmo que num plano mais inconsciente.

    Estou, aliás, absolutamente convencida de que a poesia nasce num plano inconsciente e subterrâneo, onde vivem os Rothkos que vi em Londres e os impressionistas em Paris, Marguerite Youcernar (cujo livro de entrevistas a Matthieu Galey tive o privilégio de traduzir para a Relógio D’Água, possivelmente a coisa mais bonita que fiz na vida) a fazer-nos respirar junto de Adriano, a voz da Lhasa ou do Nick Drake, um grupo de pessoas abraçadas a cantar a Grândola, o galope de um cavalo livre, a náusea que me provoca a tortura de uma tourada (agora, com a descida do IVA para esta atividade de pura crueldade, a barbárie até ficou mais barata, imagine-se), a desolação de uma pomba morta na estrada, o silêncio das casa à noite, as camélias e as estrelas cadentes da Achadinha… e também – provavelmente – as dores e as pequenas alegrias que acompanho diariamente na minha vida profissional. É de toda essa massa imensa e submersa que nasce a poesia, mesmo que verse sobre outros assuntos quaisquer. Por isso, não sou capaz de estabelecer relação entre a minha escrita e o facto de ser psicóloga, mas imagino que ela, algures, exista.


    

    Fala-me do teu processo de escrita poética. Sai de repente ou cada palavra e verso têm de ser pensados durante um tempo maior?


    Escrever é um grande mistério. Tal como já referi, e acho que na pergunta anterior respondi um pouco a esta, sinto que a escrita surge a um nível subterrâneo da nossa mente. Pode haver um trigger, qualquer coisa consciente (que vemos, ouvimos, sentimos) que a ponha em marcha, mas ela nasce noutro “sítio”. É desse sítio que vêm à tona as palavras que dão vida ao primeiro esboço do texto. Depois subimos ao patamar da consciência, e aí depura-se o poema, trabalha-se afincadamente cada verso, cada espaço em branco, cada vírgula, as maiúsculas e as minúsculas, as palavras que queremos deixar e as que devem regressar ao subsolo. Mesmo quando se escreve “por encomenda”, ou seja, para um número coletivo ou para uma revista literária, por vezes com tema previamente definido e sempre com prazos para cumprir, é o mesmo processo. Pode é, simplesmente, não acontecer. E aí falhamos o compromisso, o que é uma chatice.

    Além do mais, não acredito em boa escrita sem muito trabalho sobre o texto. Tal como não acredito que se escreva com alguma qualidade sem ler muito. Ler é como a água, um bem preciosíssimo. Para escrever, mas sobretudo para que viver seja um pouco mais possível.


No BorderCrossings do Açoriano Oriental de 6 de dezembro de 2024





sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Breve Conversa com Leonardo

 Não escolheria terra nenhuma para ser natal…

Leonardo, em conversa comigo



    Leonardo Sousa é o seu nome, mas assina todos os seus livros com simplesmente Leonardo. Nascido em São Miguel em 1993, é um dos novíssimos poetas de língua portuguesa: âmbula (2015); caderno de mitos pessoais (Artes e Letras), 2018; contas de cabeça (Companhia das Ilhas), 2022). Estes são apenas três títulos de uma obra ainda mais extensa. Mudou-se para Lisboa há poucos anos, e frequenta a Universidade Nova de Lisboa a completar um mestrado em Estudos Portugueses. O resto vem contado por ele próprio no decurso da nossa conversa. Sobre os Açores as suas palavras são contundentes, rasgam mitos e desafiam todos os nossos poderes instalados.

    contas de cabeça foi um livro muito especial para mim. Como é que um jovem poeta, como tu, veio a conhecer as literaturas clássicas, bem como outras?


    Esses chavões - «literatura», «clássico» - pouco me dizem e cada vez menos dirão,
imbuídos, como estão, de preceitos típicos do chauvinismo ocidental. De facto, algumas obras «clássicas» e algum do pensamento ocidental (mas o ocidente é sobretudo apropriação) foram importantes para o modo como escrevo. Mas também - ou mesmo principalmente – o foi a desconstrução conceptual desse ideário. Podia invocar como influências estruturais, sem estabelecer entre as mesmas nenhuma espécie de hierarquia, a Epopeia de Gilgamesh, o Prometeu Agrilhoado, o Eclesiastes; mas também o pensamento de Freud, os contos do Gogol, todo o quadro existencialista, toda a escola dos estudos culturais, poetas tão díspares como Al Berto e Herberto, Bukowsky e Nicanor Parra, sem falar de pensadores como Emma Goldman, Bell Hooks, Anselm Jappe. Certo é que categorias ideológicas como «clássico» só me seduziram até certo ponto da minha vida. Interessa-me muito mais o modo como uma obra transforma a forma como penso e, por extensão, a forma como escrevo. Interessa-me romper o universo da minha ignorância, arrombar as minhas fronteiras. Posto isto, o contas de cabeça foi um livro importante para mim, na medida em que tentei lá colocar tudo o que consegui reunir dentro de mim até 2022. Saiu um livro desencantado, um tanto ou quanto ácido, talvez pessimista e bastante auto-irónico. Olho para o livro e para o mundo agora: não vejo motivos para que tivesse sido diferente. Foi o único livro a que me pude dedicar quase exclusivamente, beneficiado com a Bolsa de Criação Literária, do Ministério da Cultura, uma almofada financeira bastante convidativa para quem não espera muito. São poemas irrequietos e incómodos, mas escritos em circunstâncias bem mais cómodas do que aquelas a que estava habituado.

   

  Foste aluno da Universidade dos Açores. Que influência essa experiência 
teve para ti?
     Os jardins eram bonitos. Ia para lá conviver com amigos, faltava a muitas aulas. O meu percurso foi sempre irregular. Preferi as noites na Travessa dos Artistas, as noites de poesia do Tascá, os concertos no Arco 8, as conversas no ¾ e na Livraria SolMar. Guardo, da UAC, algumas incursões nos estudos literários e culturais, alguns professores que continuo a admirar. Podias ter sido meu professor, mas, por essa altura, já tinha desistido. Procrastinei bastante e sem remorsos. A academia tornou-me ainda mais avesso ao elitismo da instituição. Não compreendo conceções essencialistas da realidade, da cultura, do conhecimento. Lembras-te de um célebre e recente discurso, na assembleia, sobre cultura, que tanto inflamou os ânimos? Não me chocou, vindo de quem vinha. Chocaram-me, isso sim, algumas reações. Clássico enquanto intemporal? Elitismo enquanto respeito pelo divino? Ainda estamos nisto? Basta substituir «clássico» e «elitismo», no segundo discurso, por «tradição», no primeiro: são discursos equiparáveis, faces opostas da mesma moeda. A academia ensinou-me a desconfiar de académicos. Falta-lhes terreno, materialidade, experiência horizontal da realidade.

      Fala-me da tua obra poética - como aconteceu? Via-te com frequência na
Livraria SolMar a folhear obras de natureza diversa.
    Começou pelos 16 anos. Encontrei-me com os românticos e comecei a escrever
com maior compromisso. Depois, houve o Al Berto, o Herberto, o Daniel Faria, o Emanuel Jorge Botelho, cujas poéticas foram absolutamente transformadoras para mim. Na altura, a circunstância de ter por mentora do meu trabalho a Paula de Sousa Lima - ela própria uma escritora de relevo no universo português a que o universo açoriano presta pouca atenção - foi decisiva. Escreveu um prefácio muito generoso (demasiado, acho eu) ao meu primeiro livro. Aprendi imenso com os seus talentos. A livraria SolMar é um local privilegiado de convívio entre escritores, leitores, artistas. Falávamos de literatura, cinema, artes em geral, dos derriços da política e de políticos fracos da braguilha. Ouvíamos música, folheávamos obras, discutíamos as andanças do mundo. Isto ainda antes de todo o boom cultural que e deu nos Açores a partir de 2013/14. Para quem queria fugir às trivialidades vazias, aos parolos, aos olheiros, aos trepadores-carreiristas, era uma espécie de templo a que se ia quase diariamente espairecer o sufoco. Sobretudo quero dizer que a Maria Helena e o José Carlos são amigos que guardo com o maior carinho. Que admiro a sua persistência num ambiente tão adverso. Que tiveram o desvaire de fundar uma editora – a Artes e Letras – e a generosidade de editar coisas minhas. Não tinham nada a ganhar com isso. Como não terão agora em reeditar o caderno de mitos pessoais, com novos poemas que vêm desse ano de 2018, obviamente reescritos dúzias de vezes – ossos do ofício.

     
    Disseste-me um dia que não escolherias Ponta Delgada como a tua terra 
natal, em vez de Lisboa, nem trocarias os teus estudos na Universidade Nova de Lisboa. Fala-me sobre essa tua opção de vida académica e literária.
     Não escolheria terra nenhuma para ser natal. Ter nascido num determinado lugar não nos faz especiais, nem nos faz o contrário. Sempre fui avesso, como sabes, ao quadro do messianismo insular. O fatalismo de ter nascido nas ilhas, a condição de ser ilhéu, as «açorianites», em geral, sempre me pareceram ideias pedantes. A relação entre geografia e cultura e a ação destas sobre o contínuo indivíduo-coletivo são ideias já estafadas, recorrentes já nos séculos XVIII e XIX. Agora, são bengalas usadas para fins de marketing e autopromoção, que pouco se prestam à mudança, até porque dependem da estabilidade conceptual de uma determinada mundivivência. Isto é: ótima desculpa para não se fazer nada. Nós somos uma terra pobre, sim, com uma história de resistência a fatores geográficos, climáticos, sociológicos e políticos adversos, decerto, sem dúvida. Mas não há nada de especial nisso. É incontável o número de lugares isolados, inóspitos, marginalizados que existem em todo o mundo. Não importa tanto traçar esses limites como superá-los. Os Açores têm algumas das melhores taxas de natalidade do país. E são a região que mais desperdiça talento por metro quadrado. Temos algumas das piores taxas de pobreza e de iliteracia. Um triste fenómeno, que eu acreditei que se podia combater e transformar, a médio e longo prazo, com uma ação cultural concertada, uma simbiose entre os mundos da educação, das artes e da academia, das ciências exatas e sociais, uma dialética contínua entre as populações e as instituições. As fronteiras, por serem estreitas, podiam ser-nos vantajosas: os limites dos problemas são localizáveis. Mas qualquer tentativa de mudança em profundidade esbarra em camadas de resistência, impreparação, apatia, sobretudo nos meios do poder político, mas também naqueles que dele dependem direta ou indiretamente.
Aqueles bem-intencionados que logram transformar seja o que for acabam engolidos pelo ambiente abúlico que os rodeia. É mais fácil louvar a bruma insular e fazer de cada açoriano um D. Sebastiãozinho sempre a regressar do nevoeiro infinito. A pobreza e a iliteracia fazem muito jeito: tornam as pessoas domesticáveis. Eu vi e vivi a pobreza com a carne viva toda à mostra. Vi a miséria de corpo e de espírito. Não vim das classes de poder que se movem nos círculos por direito de herança e sobrenome. Falidas moral e intelectualmente, mas que nunca viram a porta do desemprego à frente. Escrevi para isso e contra isso. Quando me senti suficientemente derrotado, vim para Lisboa, onde nada é diferente. São os mesmos problemas, transversais a quase todas as áreas, em escalas diferentes. Ponta Delgada é pequena: vista de dentro, tudo é sobredimensionado. Em Lisboa, a distância dos meios permite-me uma certa sanidade mental. Não os frequento, vivo no vaivém da minha rotina. Mas encontro os mesmos problemas numa instituição como a escola. Dou aulas. Todos os dias tenho de me confrontar com a mediocridade, com a mesquinhez e com o oportunismo saloio. Todos os dias tenho de observar o quanto de talento se desperdiça em nome de valores tão altos como encher o próprio bojo e proteger o próprio lugar.
     Eu tinha a minha ilha dentro da ilha. Tinha o meu bairro, os meus bares, a minha livraria, as minhas noites, os meus amigos. Não me esqueci de nada disso, tenho saudades de tudo isso. Mas não me podia dar ao luxo de enlouquecer tão cedo. Continuo a fazer exatamente o que fazia: estudo, trabalho, escrevo. Tenho a vida toda para continuar.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 29 de novembro de 2024
    

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sobre William Morris e o seu romance sobre o marxismo utópico no século XIX


Ainda não me livrara do sentimento de opressão, e onde quer que estivesse,
dificilmente teria consciência do lugar; portanto, não era de admirar que me sentisse bastante confuso, apesar do rosto familiar do Tamisa.

William Morris, Notícias De Lugar Nenhum


    Vou começar por dizer que este grande romance, Notícias de Lugar Nenhum, Ou Uma Época de Tranquilidade, um Romance Utópico, tinha-me passado ao lado ao fim de tantos anos de estudo e leitura. Mas pela pessoa que esteve envolvida pela sua publicação entre nós não duvidei nunca do seu valor. A saber: foi a Historiadora e Professora Raquel Varela da FCSH UNL/Lisboa, também muito conhecida como comentadora regular da nossa televisão nacional, que o sugeriu à editora Letras Lavadas para uma primeira publicação em Portugal, e de imediato aceita pelo seu responsável José Ernesto de Chaves Rezendes. É uma edição muito especial no seu grafismo e arte de capa, com uma tiragem por enquanto reduzida – e uma ficção maior do século XIX, que viria a ser um dos livros mais comentados pelas academias de estudos anglófonos e universais e pelos críticos maiores do seu tempo e do nosso. Quando falei sobre este romance com Onésimo Teotónio Almeida, Professor Catedrático da Brown University, ele confirmou-me tudo isto e muito mais. Talvez o maior conhecedor entre nós de certa problemática marxista, precisamente a ideia de “ideologia em Karl Marx”, fiquei certo de que tinha lido um grande romance, para além do conhecimento histórico que temos do século passado e de hoje sobre o que se tornaria a muito antiga ideia de utopia vinda, pois, do canónico Utopia de Thomas More desde a sua publicação em 1516. Esse termo grego que significa em precisão “lugar nenhum” traduz-se, por assim dizer, no lugar desejado sempre fora, supõe-se, do alcance da humanidade.

    Para além das palavras do posfácio de Roberto Della Santa e de Raquel Varela, Onésimo Teotónio Almeida enviou-me de imediato um longo ensaio de Ruth Kinna que analisa a crítica maior ao romance de William Morris. Os nomes dos especialistas são muitos e todos eles prestigiados, foi-me só ler as palavras de EP Thompson, o grande crítico modernista e pós modernista para que eu me desse conta da grandeza literária deste romance. Se tivesse sido escrito nos nossos tempos creio que o não leria depois de saber da sua temática e proposta utópica. Só que vindo do seu tempo, quando Karl Marx já tinha feito sair o Manifesto Comunista e William Morris era desde sempre um amigo chegado de Frederick Engels (que discordou da ficção aqui presente por não levar em conta a “cientificidade” do marxismo), a sua prosa é um poema à possibilidade de uma outra sociedade de igualdade e fraternidade, como nunca haveria de acontecer nem nesses tempos nem nunca na História posterior. A grande literatura tanto trata de realidades vividas como de realidades desejadas por quem sente a opressão dos sistemas que evoluíram até ao estado presente das nossas sociedades: a ganância, a mentira útil, a imposição de modos de vida, e sobretudo o castigo de quem cai fora do sistema ou nele participa, mesmo que dessa condição não tenha consciência.

    Notícias de Lugar Nenhum inicia com a brutalidade da sociedade britânica, esse outro berço da revolução industrial, com sindicatos e seus trabalhadores associados em 1875 em luta violenta com as forças da autoridade a mandato dos magnatas e outros senhores do Poder. De associações diversas nasce a contestação de rua (Trafalgar Square é um sítio dessa luta brutal) até que a mudança radical acontece. Depressa o narrador de William Morris começa a recontar toda a história do movimento que consegue reconstruir a sociedade segundo os seus preceitos do que constitui uma sociedade onde nem sequer a palavra “governo” é mencionada. A estrutura do romance é simples e plausível: uma viagem de um estrangeiro Tamisa acima, parando de quando em quando para a nova e inesperada convivência entre todos, a cidadania agora feita de um quotidiano onde cada um faz ou produz o que gosta, vive em comunidade ou em casas humildes mas por todos desejadas. As analepses vão contando aos mais novos o que era um passado de dor e submissão aos donos daquele mundo, que ainda existe noutras geografias próximas e longes. O romance é feito de breves passos narrativos e curtos diálogos, o leitor só pode desejar viver neste sistema-não sistema, em tranquilas margens fluviais que representam o resto do território liberto e em paz total. Os fabricantes de coisas inúteis feitas à custa do trabalho mortífero dos trabalhadores desprotegidos e desrespeitados para a felicidade de cada um – já não existem. o trabalho essencial e por vontade própria e conforto na simplicidade de cada teto entre o riso e a conversa dos dias tranquilos e bem vividos. A viagem Tamisa acima significa e torna-se a metáfora da subida feliz e estável, e não a luta metafórica do Albert Camus em O Mito de Sísifo. Aí a pedra rola sempre para baixo, derrota o suor humano e a sua esperança.

    Há sempre algo irónico em qualquer sistema literário – livro contra livro, ideia contra ideia. Notícias de Lugar Nenhum, na linguagem de poesia pura sobre um outro destino humano, vem do país, cultura e literatura que até ao século passado produziu as mais improváveis narrativas utópicas até ao século XIX, e de certo modo até ao nosso tempo. Depois de Thomas More e William Morris viriam as mais violentas distopias: Admirável Novo Mundo, de Aldous Husley, e de George Orwel com 1984 e O Triunfo dos Porcos. Se Admirável Novo Mundo previa o domínio das máquinas sobre o Homem, Orwell já falava no totalitarismo que por toda a parte parece a profecia que nos venceu. Aí está, num autor como no outro, o domínio e a opressão do Big Brother – não estarás sem o nosso olhar, é outro modo de o dizer controlado e muito menos seguro no mais escondido recôndito do mundo. Ler William Morris, ainda nesta fase da nossa existência, é lembrarmos do que poderia ser e nunca foi. A aparente romantização do autor quanto a séculos passados, quanto ao medievalismo, por exemplo, é questionável segundo todos os pontos de vista. Escravos satisfeitos não poderiam constituir uma sociedade sem liberdade e sem as condições essenciais de vida.

    Raquel Varela escreve no posfácio que seria esta sociedade socialista, a de Notícias de Lugar Nenhum, a sua sociedade ideal e na qual preferiria viver. Infelizmente, nem toda a literatura da bondade e felicidade perfeita tem a ver com o que dizem ser a natureza humana e os seus piores e incuráveis instintos. A tentativa de chegarmos às margens do Tamisa, de todos os Tamisa, tem falhado muito tragicamente. No entanto, sem a noção de “utopia” não lutaremos nunca por outro modo de ser e estar uns com os outros, o que não seria menos trágico. A grandeza do romance de William Morris reside aí mesmo, uma proposta artística de nunca deixarmos de lutar contra quem nos oprime de maneira brutal ou através da criação de “valores” que nos tornam escravos voluntários dos sistemas da compra e venda dos mais falsos e inúteis utensílios de uma felicidade imposta, enquanto a maioria da população permanece caída na miséria dessas coisas e condenada permanentemente ao insulto, que é a sua condição de vida diária.

Notícias de Lugar Nenhum vem de um autor que foi um artista variado e total da beleza humana. Os seus trabalhos vêm mencionados na própria capa do livro, que traz algumas pinturas ou quadros das suas outras obras. Tem ainda a colaboração do artista açoriano Urbano, que trabalha com a Galeria 111 de Lisboa. Conteúdo e forma fazem deste livro um objeto de arte em si próprio. O prefácio é da autoria de outros dois estudiosos brasileiros, Michael Lowy e Leandro Konder.

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William Morris, Notícias de Lugar Nenhum Ou Uma Época De Tranquilidade/Um Romance Utópico (tradução, revisão e notas de António Simões do Paço), Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2024.

BorderCrossings do Açoriano Oriental de 22 de novembro de 2024