Carlo Matos é um autor bi+/poly que publicou 13 livros, incluindo We Prefer the Damned (Unbound Edition Press) e As Malcriadas: or Names We Inherit (New Meridian, 2022). Os seus poemas, contos, ensaios e recensões têm saído em inúmeras publicações. Os seus livros foram recenseados em publicações como Kirkus Reviews, Boston Review, Iowa Review e Portuguese American Journal. Carlo recebeu bolsas e apoios da Disquiet ILP (Portugal), CantoMundo, Illinois Arts Council, Sundress Academy for the Arts e La Romita School of Art (Itália). É membro fundador do coletivo de escritores luso-americanos Kale Soup for the Soul e vencedor do Heartland Poetry Prize. Vive atualmente em Chicago, é professor nos City Colleges of Chicago e foi lutador de MMA e kickboxer. A nossa conversa foi feita por escrito, com trocas continuadas a propósito desta entrevista. Nesta versão para o Açoriano Oriental parte da resposta que se segue foi cortada a favor do espaço desta página.
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Na minha recensão A School for Fishermen, publicada aqui nos Açores, escrevi: “Fishermen do açor-americano Carlo Matos é uma viagem persistente por geografias vividas e imaginadas, uma narrativa com várias vozes, todas elas ligadas a uma mesma família que tenta apaziguar a ansiedade provocada pelas sombras de um certo passado, tanto em dias luminosos como em tempos mais sombrios...” Como chegou a esta necessidade artística?
Costumo dizer que Fishermen é o tipo de livro de poesia que um dramaturgo poderia escrever. Embora tenha começado como poeta, apaixonei-me pelo teatro muito cedo na faculdade, e apaixonei-me a sério. Ao contrário da poesia, tive quase sucesso imediato (na medida em que isso existe) no teatro, enquanto lutei por anos para escrever poemas suficientemente bons para serem publicados. Acho que isso se deve, em grande parte, a todas as ideias erradas sobre poesia que herdei de filmes, séries de televisão e até de alguns professores bem-intencionados. Não tinha os mesmos preconceitos em relação à escrita dramática, por isso não tive de perder tempo desaprendendo maus hábitos.
Curiosamente, o meu pai também escreveu peças quando era jovem, e eu sempre estive envolvido em teatro como intérprete, por isso, o teatro fazia parte da cultura da minha família. Não é que os meus pais fossem propriamente apoiantes da minha presença em palco, mas também não resistiam nem denegriam — o que, em minha casa, era o mais próximo de apoio que se podia ter. Ainda assim, nunca tinha escrito uma peça antes da universidade.
Mais ou menos na mesma época em que escrevia, encenava e produzia peças, consegui pôr as mãos em Fernando Pessoa & Co., de Richard Zenith. Se não me engano, cronologicamente, terminei a minha primeira peça em 1997 e o livro do Zenith saiu em 1998. Estava há uma vida à espera de encontrar um livro de poesia portuguesa em tradução. Consigo ler português, mas muito mal, e nunca seria capaz de lidar com poesia ou prosa sofisticada com alguma fluência.
Um dos meus cursos académicos é em teatro, e os outros, em literatura; por isso, estudei incontáveis autores europeus. A minha tese de doutoramento, por exemplo, foi sobre Henrik Ibsen. Na escola, estudei escritores de toda a Europa, mas nenhum de Portugal (ou de descendentes de portugueses). Nenhum! No secundário, lemos muitos autores da “lost generation” como Hemingway e Fitzgerald, mas não Dos Passos. Manhattan Transfer é um livro excelente, mas tive de descobri-lo sozinho. Ninguém mencionou que Emma Lazarus, a autora do célebre poema da Estátua da Liberdade, também era de ascendência portuguesa. E eu cresci num lugar cheio de portugueses; por isso, o que se passava ali? Porque é que passava todo o meu tempo a ler, sobretudo, escritores ingleses?
Não me interprete mal: ainda adoro muitos desses escritores; gostar ou não gostar deles não é a questão. A questão é que os escritores do país de onde vem a minha família foram praticamente apagados do currículo das minhas várias escolas. Ainda hoje, embora esteja muito melhor, o número de livros traduzidos para inglês é relativamente pequeno comparado com escritores de outros países. Foi preciso o Saramago ganhar o Nobel, em 1998, para as coisas começarem, finalmente, a mudar a sério.
O livro do Zenith foi o que eu queria há tanto tempo. E o Pessoa, claro, é um escritor selvagem à partida, tornando as explorações de persona de poetas como Eliot e Pound em brincadeira de criança. As heteronímias de Pessoa conduziram-me indiretamente à ideia de escrever poemas de persona por meio da dramaturgia. Dessa forma, podia escrever sobre os temas que vinha explorando há anos, mas a partir de uma perspetiva mais distanciada. Eu ainda era um homem muito jovem quando comecei a escrever os primeiros poemas que viriam a constituir Fishermen. Os poemas mais antigos dessa coletânea datam de 1998, quando eu ainda estava no penúltimo ano da faculdade. Precisava de sair da minha frente, por assim dizer, e fiz isso criando personagens como fazia nas minhas peças.
João Filipe — a voz de “Stonemasonry” — torna-se pedreiro, como o meu pai, e desenvolve, por assim dizer, toda uma metafísica em torno da construção e destruição de muros. Eu também tentava associar a cantaria a outras formas de conhecimento esotérico: o pedreiro como maçom ou outra espécie de sociedade secreta que diz guardar saberes ocultos.
A voz do Filipe surgiu quase totalmente formada. Foi um daqueles raros momentos quase místicos de que costumo desconfiar. Não é que não faça espaço para o acaso; simplesmente não tenho paciência para o misticismo levado demasiado a sério. Parte do trabalho de escrever é estar aberto ao acaso, estar aberto à musa, por assim dizer, mas há uma diferença entre isso e ficar sentado à espera de que algo venha do nada. Se ficarmos à espera da musa a sussurrar-nos ao ouvido, como ainda é tão habitual nas dramatizações populares de artistas e escritores, nunca fazemos trabalho nenhum, ou, pelo menos, não muito...
Uma das minhas obsessões da chamada “meia-idade”- middle age - é a ideia de ter os sonhos errados. Não sei como é nos Açores, mas na América a noção popular de sucesso é patológica. Ensinaram-nos a nunca desistir. Ouvimos esta frase, nunca examinada, em todos os contextos imagináveis. Há algum mérito nisto, claro. Não podemos queixar-nos de falta de sucesso se não nos dedicamos de forma suficiente ao trabalho duro de lá chegar; contudo, também há perigo nesta ideia. Se nunca desistirmos, aconteça o que acontecer, nunca poderemos distinguir as buscas que valem a pena das que devemos abandonar. Há uma diferença entre trabalhar arduamente e passar a vida a bater a cabeça numa porta fechada até ficarmos em sangue...
A minha coleção de ensaios breves, The Quitters, lida com a ideia de falhar e desistir repetidas vezes, tentando mostrar como esse “nunca desistir” se torna uma ideia cancerígena, em vez de um caminho para o sucesso.
Mas a minha primeira abordagem séria desta ideia deu-se com o Felipe. Ele debate-se com os seus muitos fracassos internalizados, alguns já ligados à sua queeridade escondida, que se tornaria um tema central anos mais tarde em We Prefer the Damned. Ele tem uma paixão por um novo heterónimo que inventei, o filho de Alberto Caeiro, o verdadeiro “guardador de rebanhos”. Quis acrescentar o meu heterónimo ao panteão do Pessoa. Foi a minha maneira de me situar na tradição literária do modernismo português. Com algumas referências a Camões e ao fado, foi uma das primeiras tentativas de me ligar a coisas portuguesas para lá da minha experiência pessoal.
Curiosamente, a árvore genealógica, no início do livro, foi uma das últimas coisas a surgir. Não foi ideia minha, gostava muito que tivesse sido. Veio de um dos meus melhores amigos da altura, que tinha lido praticamente tudo o que eu escrevera até então. Percebi imediatamente que era a ideia certa. Colava tudo.
Este livro demorou 10 anos do começo ao fim, e foi a minha primeira tentativa de pôr um pé nos Açores e outro nos Estados Unidos, como um colosso. E, como a estátua grega original, sabia que, quando tudo estivesse dito e feito, o mais provável era que só sobrassem uns pés desmembrados para marcar que alguém tinha estado ali, quem quer que fosse.
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De Gávea-Brown, VOL. L, N.º 2, 2025. Tradução de Diniz Borges. Agradecemos à Gávea-Brown e ao seu diretor Onésimo T. Almeida por permitir que a plataforma Filamentos a publicasse.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 19 de dezembro de 2025



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