A verdade é que a verdade tem sido sempre uma ideia contestada… A história não está escrita na pedra. O passado é constantemente revisto de acordo com as atitudes do presente.
Salman Rushdie, Linguagens da Verdade
Desde o início da sua carreira literária Salman Rushdie, talvez o mais consequente escritor da nossa época a partir das últimas décadas do século passado até aos nossos dias, nunca deixou de escrever e de participar em quase tudo que respeita a encontros político-literários em inúmeros países. Parte da sua presença deve-se acima de tudo à grandeza artística da sua escrita ficcional, e depois à sua força interior perante uma ameaça de morte anunciada. Em 1988 acabava de publicar no Reino Unido Os Versículos Satânicos/The Satanic Verses, e em 1989 saia a edição norte-americana. Um parênteses pessoal: na altura eu não conhecia os livros de Rushdie, e num dia qualquer visitei uma livraria que ficava ao lado da cidade onde eu vivia, e lá estava essa primeira edição americana acabada de chegar com a sua capa mística pontuada a preto e emoldurada a vermelho, no centro a representação do que me pareciam ser dois demónios em luta. O autor, entretanto, já tinha sido premiado na Inglaterra ao mais alto nível pelo Os Filhos da Meia-Noite e por Shame na França. Tinha sido a minha desatenção numa altura da vida em que eu estava totalmente dedicado a questões literárias e culturais bem mais perto de mim, e do passado da nossa gente. A imprensa literária americana, por sua vez, presta hoje muito mais atenção à literatura do mundo. Voltei a olhá-lo de rompante e deixei-o de imediato por pensar ser mais um daqueles romances sobre exotismo ou crendice religiosa, ou coisa parecida. Saí de volta a casa, e ainda no carro liguei o rádio. A notícia foi imediata e generalizada naquele dia: um escritor de nome Salman Rusdie acabava de ser condenado à morte por uma fatwa declarada ou pedida pelo então líder do Irão, Ruhollah Khomeini. The Satanic Verses! Dei meia volta e dirigi-me de novo à livraria. Quando pedi o livro disseram-me logo que acabava de ser arrumado no armazém, que deixasse o meu nome para eventualmente guardarem-me um exemplar. Num dia ou dois o romance regressava às montras, como que num ato de desafio a um regime inimigo, e em defesa sem apologia da liberdade de expressão.
Li-o de imediato e fascinado duplamente por uma espécie de reinvenção da língua inglesa, enriquecida pelas linguagens de rua em Nova Dehli e Bombaim, como nas ruas de Londres e, mais tarde e em páginas posteriores de outros romances, de Nova Iorque, e sobretudo pela sua temática predominante nas suas mais de quinhentas páginas. Mal sabia eu que poucos anos depois pedia a alguns dos meus primeiros alunos na Universidade dos Açores para lerem certos passos mais pertinentes à nossa própria experiência como povo noutras sociedades, o nosso português do mesmo modo transformado pelos falantes na mudança da sua geografia e no nascimento noutros territórios. Era a questão das migrações, e como enfrentavam a sua condição de outro nas sociedades metropolitanas ocidentais, neste caso Londres, tudo que o que continuamos a ler e a debater atualmente, tudo o que nós portugueses conhecemos intimamente, mesmo que em circunstâncias históricas ora semelhantes, ora muito mais amenas. Como diria pouco depois a revista TIME, a propósito da literatura pós-colonial e do poderoso ensaio Orientalismo, de Edward W. Said, a escrita de filhos e filhas de terras outrora colonizadas, a emergente literatura pós-modernista que dava voz aos deserdados, e desfazia na literatura clássica eurocêntrica, frequentemente racista, na criação de imagens dos povos orientais e noutros continentes: The empire writes back/O império responde.
Os ensaios no presente Linguagens da Verdade foram escritos entre 2003-2020, portanto antes do recente esfaqueamento sofrido pelo autor no que era para ser mais uma intervenção pública no norte do estado de Nova Iorque, que o deixou cego de um olho e com outras debilidades físicas aos 75 anos de idade. Salman Rushdie resistiu com uma força que seria desusada entre alguns de nós. Não se rendeu nesse momento feroz, como resiste na sua arte literária. Ao contrário do habitual pedantismo académico, os seus ensaios e outros textos deste livro foram escritos em contextos diversos, desde a conferência mais ou menos formalizada a outras intervenções ocasionais, recensões de livros, ou simplesmente por exigências pontuais da vida da mente. A seriedade intelectual com que olha um mundo em espasmos mortais junta-se ao humor quando fala de si, a resistência sábia a quem o mataria, a quem nos tenta oprimir a todos politicamente e em toda a parte, a quem queimaria – e queima – todos os livros cuja arte e verdade têm mais poder do que todos as armas e toda a irracionalidade raivosa. Para o autor, a História nunca é esquecida, a sua e da humanidade no seu todo. Como filho da elite colonial indiana sob o jugo britânico, a literatura do dominador tanto é apreciada no seu melhor como é denunciada no seu chauvinismo e falsidade. O diálogo com os escritores do mundo é constante, as infindáveis formas literárias e de pensamento em qualquer língua ou cultura são olhadas no seu contexto, a busca da universalidade nunca deixa que as “excentricidades” locais sejam menosprezadas no que nos transmitem da criatividade de qualquer comunidade que ele encontra num real percurso de vida sem paragens, e nas obras que transfiguraram e criaram o seu imaginário.
“Há, no entanto, – escreve Rushdie num destes ensaios – alguma verdade na ideia de que no Ocidente no século XIX, havia um consenso bastante generalizado sobre a natureza da realidade. Os grandes romancistas da época – Flaubert, George Eliot, etc. – podiam supor que eles e os seus leitores, em termos gerais, concordavam sobre a natureza do real, e a grande era do romance realista foi construída sobre essa base. Mas esse consenso foi erguido sobre uma série de exclusões. Era um consenso de classe média essencialmente branca. Os pontos de vista, por exemplo, de povos colonizados ou minorias raciais – pontos de vista a partir dos quais o mundo parecia muito diferente da realidade burguesa retratada em A Idade da Inocência, ou Middlemarch, ou Madame Bovary – foram em grande parte apagados da narrativa. A importância de grandes temas de interesse público foi também frequentemente marginalizada. Em toda a obra de Jane Austen, as Guerras Napoleónicas quase não são mencionadas; na imensa obra de Charles Dickens a existência do Império Britânico é apenas reconhecida de relance”.
Lado a lado com o que consideramos ser a sua tragédia, a condenação à morte por ser um dos grandes escritores do mundo e de todos os tempos e de todos nós, poderá para ele ter outro nome menos dramático, tal a sua resiliência, ou até mesmo uma paciência e riso trágico muito particular. Vejo hoje fotografias dele, com um olho tapado por uma lente escura, mas a sua cara transmite uma quase indescritível calma. Trocou Londres por Nova Iorque há uns bons anos, que resultaria noutro romance sobre a experiência imigrante, um outro entre todos os outros, alucinados mas nada histéricos, ou tão só um jardineiro nas suas tarefas do dia, Fury (2001), um festival romanesco das mais antigas tradições no centro eufórico e modernista da América do Norte. O seu estado de espírito, expresso num outro ensaio do livro aqui em apreciação, creio que durante a pandemia que o apanhou no isolamento da sua casa de modo também mais ou menos gravoso, nunca exclui o riso na comunicação com os seus amigos mais chegados no tempo e no espaço. Christopher Hitchens, um distinto jornalista britânico dos nossos dias, também residente em Nova Iorque durante os últimos momentos antes da sua morte precoce (2011), tinha-lhe mandado o original do livro Deus não é grande para uma opinião do mestre amigo. A resposta não se fez esperar: tem uma palavra à mais no título, respondeu-lhe o autor de Os Versículos Satânicos. Bem sabia Rushdie o que poderia acontecer numa América de fanáticos religiosos e ignorância de pradaria, por assim dizer. Considerava o seu grande amigo um jornalista guerreiro, pela coragem da palavra, pela arte das suas linguagens sem medo, pela verdade inquietante num mundo de injustiça e sangue, de charutos e champanhe por entre os escombros sociais e económicos em toda a parte.
Esta dedicação à liberdade de expressão em todas as suas formas é uma constante na vida de Salman Rushdie. Entre 2004-2006 presidiu ao PEN American Center. Escreveu vários ensaios em Linguagens da Verdade sobre esta experiência e outros textos dirigidos a grandes autores, “Textos Para o Pen Club”. As secções internacionais do PEN constituem a mais poderosa instituição mundial de escritores e intelectuais, cuja missão principal é promover a literatura e a defesa dos direitos dos seus autores, numa luta incessante contra a opressão em qualquer parte ou sob qualquer regime. Fundado em 1921, alguns dos seus ex-presidentes incluem Heinrich Boll, Alberto Moravia, Arthur Miller, Norman Mailer e Mário Vargas Llosa. Está presente em mais de 100 países, e inclui a sua secção PEN Clube Português. Alguns escritores açorianos tornaram-se associados nos últimos anos por proposta da professora e escritora Teresa Martins Marques (Universidade de Lisboa), sua antiga presidente.
Languages of Truth/Linguagens da Verdade foi publicado nos EUA concomitantemente com o romance Victory City, que também será lançado em Portugal nos próximos meses.
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Salman Rushdie, Linguagens da Verdade (Tradução de Isabel Lucas), Lisboa, D. Quixote/LeYa, 2003.
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