Ocupar os meus dias com pensamentos mórbidos e cínicos traz-me alguma distracção e prova que o coto bem sarado me devolveu o humor negro e o juízo.
Maria Brandão, O Quarto Do Pai
O que é que distingue uma novela de um romance? O número de páginas? Não, não é bem assim. Por certo que a ficção de Maria Brandão desafia os leitores mais sensíveis muito para além das questões teóricas literárias. O Quarto Do Pai, publicado recentemente, confirma o que gostaria de deixar claro por entre a ambiguidade qualificativa entre um género e outro. Para mim, trata-se de um romance com um pouco mais de cem páginas em que a sua personagem principal, cujo nome raramente é mencionado – assim como o de todos os outros que povoam estas brilhantes páginas, família e companheiros de uma longa estrada de vida. A sua fala na primeira pessoa é necessariamente caracterizada pela contenção verbal ou expressões um pouco mais alongadas sobre os pensamentos do narrador ante um presente que lhe é caro, mas, do mesmo modo, uma frase ou breve desabafo diz-nos tudo o que precisamos saber sobre todos e todas, particularmente nas memórias de dias bem mais felizes na caça a cordenizes, na criação dos respetivos cães, na procura de armas antigas por puro prazer, na apreciação da sua e outras mulheres entre tudo e todos, na insinuação no gosto ou na fantasia da cama, na recordação de amigos e, como diria Andrei Kurkov num dos seus romances, de animigos. Outra questão, estamos na ilha de São Miguel como poderíamos estar na Califórnia de Raymond Carver. A geografia tem e não tem importância num ato artístico, poderá ser um mero pormenor ao acaso. O outro feito narrativo é o de uma autora que reinventa um homem, entrando com profundidade na sua psicologia e mundividência, na ideologia prevalecente da sua classe social, no historial das suas opções, para uns livres da tradição, para outros o cerco limitativo que Ortega Y Gasset disse ser o de todos nós conforme as nossas circunstâncias. Não se trata de qualquer apropriação do outro, como no mundo anglo-americano era habitual questionar com boca torcida, mas sim de um exercício marcante de inteligência, absoluta empatia e compreensão perante vidas que poderão, ou não, terem sido observadas de perto, ou imaginadas numa linguagem cuja clareza e insinuações não nos deixam mais.
O realismo existencial do quotidiano quase nunca desapareceu depois da maçada de James Joyce e seus gémeos imitadores, o experimentalismo e interpretação estritamente literária teve a mesma sorte que a memória ambígua que também temos do quase esquecido estruturalismo nas ditas análises e interpretação de textos. Alguns assimilaram durante décadas uma outra espécie de “colonização mental”, parafraseando um grande escritor português quando falava de questões similares. Permaneceram as narrativas que tantas obras sublimes nos deram desde sempre até aos nossos dias, essas em que os recursos técnicos de um outro modernismo pós-experimentalista, formal e temático, pede sempre uma leitura atenta mas através da palavra direta, sem artifícios linguísticos que nada significam, ou que carregam em si o vazio de quem não sabe ou não quer contar uma estória. A ficção de Maria Brandão ergue-se com tal originalidade que esquecemos irremediavelmente tudo quanto certos outros escritores e escritoras entre nós faziam questão de perpetuar nos símbolos da flora e fauna, nas cansadas metáforas do sofrimento que supostamente tem sido a representação da nossa existência por aqui. Passado e presente conjugam-se na prosa desta autora escorrendo na linearidade de momentos de vida surpreendentes, e ante os quais o narrador não consegue verter uma única lágrima pela dor radical da sua doença e envelhecido corpo, o humor com que tudo percebe e vê à sua volta desde sempre. Nem um único passo que nos é dado ler se torna desconcertante. Não rimos de nada e de ninguém – pelo contrário, rimos muito com ele e com as restantes personagens nas suas imediações, no seu leito de espera em casa rodeado de cuidadores/as, ou num quarto do hospital olhando com um sorriso matreiro e alegremente incorrigível o traseiro dalgumas enfermeiras mais atenciosas.
Nunca estamos longe em O Quarto Do Pai da morte anunciada de um homem de mais de oitenta anos, proprietário abastado de uma Casa Grande rural e de imensas terras em volta, a aguentar todas as doenças e lesões corporais imagináveis, pai de três filhos e marido de uma mulher um tanto mais nova e vaidosa por entre os ais a que se habituou aos poucos, na sua própria casa e na espera frequente da ambulância de serviço, que a dada altura também é objeto dos risos do doente, que acaba eventualmente sem uma perna, mantendo tudo o resto que desgasta a cada minuto da sua vida. Vida folgada e sem tiques de privilégios permitiu-lhe dedicar-se preferencialmente, como já foi referido, à alegre caça ali para os lados da Povoação. Enquanto lhe torcem e retorcem nas camas da sua invalidez devido a uma queda mal dada no já longínquo passado do recreio preferido com cães vivos e pássaros mortos, ele vai relembrando tudo isso nos seus relatos múltiplos e divertidos, limpos de qualquer auto-comiseração. Nas suas memórias ficaram as correrias dos seus primeiros carros com nomes próprios aqui na terra até às suas viagens por vários países como juiz de concursos de raças caninas, que nem sempre acabam bem, para gáudio de que quem o ouve. Sem heroísmos de qualquer espécie, sem os preconceitos de épocas distintas num país como o seu, quase agradece a todos os deuses cada momento da sua longa caminhada, sem nunca deixar de pressentir que o seu fim definitivo ronda por perto. A sua redenção, a sua recusa aos olhos molhados de qualquer choro em vez das constantes tiradas cómicas numa ou qualquer situação de emergência, mais sentida pelos médicos do que por ele, fazem do leitor quase como que com um comparsa na boa vida enquanto lhe tira o medo do que eventualmente poderá ser a sorte de muitíssimos outros – dentro e fora do texto. Esquecem a beleza das hortênsias, o céu nublado com boas abertas, e até o mar que tudo dá e tira – uma ilha é um continente pequeno, o mundo inteiro em miniatura epistemológica. A grande literatura poderá também descrever a geografia do lugar, o que acontece como pano de fundo em qualquer narrativa ficcional. O centro permanece sempre a tentativa de penetrar a alma e pensamentos de qualquer personagem maior e significante. Quando isso acontece num romance através de cada palavra e fulgor narrativo, mais do que dar continuidade a um suposto cânone literário – corta com ele, e provavelmente inicia outra visão da arte linguística, por assim dizer.
“É fácil julgar os outros – diz o patriarca doente e bem lúcido – quando se tem dinheiro para gastar e civilidade de berço para esbanjar. Um velho doente é um incómodo tremendo, uma despesa acrescida, um chapadão na cara de quem se julga eternamente belo e saudável, que sei eu das motivações de quem não consegue conviver com isto? No fundo da minha cama articulada e coberta com lençóis frescos de algodão, no meu quarto espaçoso e arejado, no meu jardim com vista para o oceano, a decadência instala-se tão depressa como no recôndito de um lar ou de um vão de porta. Mais cheirosa e confortável, é certo, maquilhada e plastificada como uma ex-modelo de topo, mas de igual modo pressentida.
A propósito, podia eleger confortável como a ‘a palavra do ano’ a par de posicionado e levante, entre outros acrescentos vocabulares ao meu dia-a-dia, como resguardo, fralda, manápula, luvas de vinil, preservativo urinário ou penrose, no original inglês, para parecer mais elegante, algália, saco de urina, calcanheira, corpitol, meia de compreensão, cadeira sanitária e por aí fora até esgotar a oferta de produtos de geriatria de uma loja médica. ‘Sente-se confortável? Está bem posicionado? Vamos fazer levante?’ Digo sim a tudo, se disser não o massacre nunca mais acaba e vejo-me impedido de recolher aos pensamentos que me trazem alegria.”
Que nos leva a ler ficção ou poesia, em vez de ensaio nas suas diversas formas? Não dou um tiro nos pés, só relembrar que uma grande peça literária nunca mais nos deixa, mesmo da estante antiga comunica e chama-nos de novo, como que num grito a dizer que não estamos sós, que a nossa sorte, boa ou má, em nada se diferencia de todos os outros em toda a parte. Um dos segredos da grande literatura está nos pormenores que definem todo o nosso ser, palavras ditas e gestos de representação refletem sempre as nossas contradições na caminhada de sermos e estarmos perto ou longe dos outros.
Maria Brandão formou-se com uma Licenciatura em Estudos Portugueses e Ingleses, e fez uma pós-graduação em Assessoria Linguística e Tradução, na Universidade dos Açores. É autora já reconhecida pelos seus leitores de Corpo Triplicado, de 2018, Enlouquecer é Morrer numa Ilha, de 2020, e Talho, que faz parte da coletânea de ficção e outra escrita, Avenida Marginal I.
_______
Maria Brandão, O Quarto do Pai, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2022.O BorderCrossings do Açoriano Oriental, 4 de Novembro, 2022.
Sem comentários:
Enviar um comentário