segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

A Poética Da Melancolia E Da Resistência Na Avenida


ando com a tristeza do lugar/como um relógio parado/ – parado nas horas mais baixas/onde a saudade se despe.

Álamo Oliveira, Avenida Marginal, Poesia

Não associem aqui a palavra “resistência” a noções de “política”, e muito menos a noções de “ideologia”. O seu significado tem uma semântica muito mais vasta – a resistência à nossa condição existencialista no alargado sentido sartreniano no contexto de uma pequena sociedade, que é Portugal inteiro na sua continentalidade e insularidade, lambendo todos os dias
as suas  feridas de uma longa História mal contada, enquanto desconfia do futuro, que nunca chega. Tem os seus residentes que deambulam pelas ruas, e tem os seus artistas e pensadores de consciência em alerta sobre todas nossas contingências pessoais e coletivas, a viver a sua e nossa condição humana  ligada a todas as geografias para além de línguas e outras construções históricas, mais imaginadas do que sustentadas nos factos, que também poderão ser – e são – sujeitos à subjetividade, ao impressionismo, de cada um ou uma, por mais “científicos” que se poderão considerar. Bem sei que a palavra “melancolia” também tem conotações negativas, que uma mente viva não deveria aceitar. Só que vivemos todos em subterrâneos de solidão, estou em crer, tanto num quarto fechado como no meio de multidões em movimento nas ruas citadinas, os “mortos ambulantes” de Thomas Wolfe no seu conto nova iorquino. Todos estes poetas (são 14, mais um inédito de Emanuel Félix) no novo volume de Avenida Marginal, Poesia têm voz que chega longe, nunca confinados pela sua condição de ilha, nem limitados pela distância de todas as chamadas metrópoles. Uns e outros, ilhéus e continentais, sendo poetas maiores, fazem da geografia um espaço vasto, ou mesmo nulo por definição, apesar das grandes máquinas publicitárias que tentam insinuar o contrário. Nada, lugar ou opções de vida relacionadas, reduz a sua grande arte poética, como fica demonstrado nestas páginas. A circunstância Açores nada disso condiciona, nem o pensamento, nem na palavra que dialoga com todos os outros em redor ou ao longe.

     Estamos numa época em que predominam todas as dúvidas que envolvem a nossa sobrevivência como civilização: pandemias e guerras, indefinição política e ideológica, injustiça e desigualdade, que parecem nunca se conjugar. Que vale a poesia por entre tudo isto que nos assola diariamente? Tudo. São as vozes e a arte que penetram fundo nos nossos estados de alma. São essa consciência não dos “factos” que inundam todas as conversas públicas ou privadas, mas sim o que um de nós poderá sentir e não dizer, não diz e não está certo da sua verdade interior, do seu lugar no mosaico total que abrange todas as questões mencionadas anteriormente. Esta é uma coletânea singular pela sua abrangência literária, a palavra transmissora do que o poeta percebe de si próprio, os significantes de cada verso absorvidos empaticamente ou não pelo leitor. Avenida Marginal, Poesia junta alguns dos melhores autores entre nós, e este “entre nós” quer dizer nomes destas ilhas e de outras terras do nosso país. A geografia de que falei aqui está muito presente, mas apenas para nos relembrar que a condição humana não tem fronteiras. As várias idades que se congregam em cada entrada destas páginas falam tão-só – dizem muito – da solidão que cada um sente na vida regrada ou anárquica que tem sido o nosso destino. Não há nem poderia haver queixumes porque a arte literária não tolera isso fora do que temos por vivências celebradas em páginas coloridas e inúteis. Uma vez mais, dos poetas novos aos menos novos sobressai a interpelação silenciosa ao que nos rodeia, a beleza de se ser e estar vivo, assim como do desencontro com tudo o resto. Por vezes a sátira, como outros já escreveram, é ou deve ser sempre dirigida por inferência aos poderes ocultos que  condicionam a nossa existência, e nunca a quem nos passa ao lado de cabeça baixa.  Um verso claro e significante não acontece num momento de desorientação, e sim num perfeito entendimento do Nada em que nos encontramos, como no poema de Leonardo, que parece vindo de um ancião de Atenas a falar aos conterrâneos milhares de anos depois: este mês/as contas batem certo/lembro-me de tudo/o que aconteceu/com os sismos/às costas/a história ascendeu/à condição/de contratempo/lembro-me de tudo/o que nunca aconteceu/e como sempre/o sentido da vida/mal chega/para as despesas.

     

Avenida Marginal, Poesia é dedicada à memória do grande poeta angrense Emanuel Félix (1936-2004), e depois abre com Álamo Oliveira, o escritor maior também da Ilha Terceira, seguido de mais treze poetas, todos eles e elas já de nome reconhecido dentro e fora dos Açores. A poesia  contém ideias, quer em direto, quer pelos seus símbolos e metáforas – o impulso da denúncia ou o simples sentir e pensar tudo o que nos rodeia, a natureza indiferente, ou mais vivamente a insinuação da sociedade em movimento, o reconhecimento do poeta perante a realidade em que se encontra; a vida que nos é dado viver, ou meramente consentida pelo mistério do destino, os poetas atentos aos seus/nossos dias e ao fogo real ou pressentido que desde sempre nos ameaça. A arte, já foi escrito milésimas vezes, é esse espelho que nos devolve o mais íntimo em nós. Geralmente os intelectuais, lato sensu, parecem evitar falar em direto das tragédias que pensamos testemunhar ao longe e no conforto de uma poltrona caseira. Álamo Oliveira abre a Avenida Marginal com um poema, creio que o primeiro entre nós, intitulado “Ucrânia: Nunca Mais O Silêncio”, desmentindo o que se pensa ser a suposta indiferença perante o que está a acontecer em territórios mortíferos, a um tempo, repita-se, ao longe e dentro das nossas casas, a nossa dor e raiva raramente anunciadas. 

     este povo não fala.    chora.

     a pátria que lhe lhe tiram é o cais

     que separa a morte da vida.

     o estrondo vem do estômago da bomba

     e espelha as ruínas da solidão.


     ninguém observa este povo que não fala

     e que anda pelos atalhos da pobreza.

     ele sabe que são velhas as palavras

     que sobram dos estilhaços do déspota.

     ele sabe.    mas abre a janela da tempestade

     e deixa partir os pássaros de ferro e fogo.

     O céu espanta-se.     Sozinho.


     amanhã vai haver outro povo que não fala

     e tudo será apagado sem mais remorso    sem

     mais perfume    ou    quem sabe?    sem     

     mais beijo nuclear no rosto da criança.

     quem sabe?     Nunca mais o silêncio.

     Se transcrevo este poema na íntegra é porque se destaca sem mais nenhuma palavra menorizar neste livro supremo que é Avenida Marginal, Poesia. A grande literatura é por natureza outra forma de testemunho solidário e memória, arquivo contra o esquecimento, neste caso  pelo brilho e reflexo dos seus versos, que nos colocam entre a falsa paz do nosso quotidiano e o furor existencial no limbo “do ser e o nada”. Cada geração de escritores acha por bem renegar os seus antecessores, por maiores que tenham sido e são, raramente escapando a acusações ideológicas, atirando um nome contra outro, como se a literatura no seu melhor não se completasse através do diálogo continuado, tal como o entendo na leitura sequencial de todos os poetas aqui representados. Como Ulisses, nem a guerra de qualquer espécie impede que os sobreviventes regressem a casa para nos dar conta da tragédia e em alguns instantes do incenso florido e belo dos campos pelos quais caminharam e caminham à redescoberta de si próprios. O que repetem estes nossos poetas são as intemporais verdades e angústias de todas as vidas inteiramente vividas e conscientes da sua própria existência no silêncio da noite e na luta do dia a dia. Regressemos à casa açoriana lembrada por Emanuel Jorge Botelho no brevíssimo poema de dois versos em “Ilha”: guardamos, no linho, o doer do tempo./o mar é a nossa cicatriz. 

     Não se reduza o conjunto de poemas neste quarto volume de Avenida Marginal aos temas que  destaquei neste texto. Parte da originalidade deste livro está no facto de acontecer uma diversidade temática alusiva ao nosso cerco do mar e noutras margens em terra firme, lança um olhar sobre as geografias nas mais diferenciadas formas do dizer – é a diversidade do mosaico artístico e humano que nunca deixa de estar interligado num todo. Os poetas convidados por Maria Helena Frias, coordenadora deste projeto intitulado Avenida Marginal, chegam aos sismos no mais profundo do seu ser no tempo histórico que lhes é dado viver – em agonia em certos casos e acontecimentos, como no quadro mais famoso de Pablo Picasso, ou como no estoicismo e solidão do vazio nestes seus espaços, que relembram a terra erma de T. S. Eliot. A busca, sempre, do sentido da vida por entre o inevitável lamento e a paz irrequieta.

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Avenida Marginal, Poesia, Ponta Delgada, Artes e Letras, 2022. Publicado no meu BorderCrossings, do Açoriano Oriental, 20 de janeiro de 2023. 

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