O Vamberto e o Anthony eram vistos a andar nos corredores da Pleasant View School com as suas cabeças juntas e a falar das situações do momento, com as suas caras iluminadas pelos sorrisos e gargalhadas.
Mary Barcellos Chancellor, numa recente carta que me foi enviada
Mary Barcellos Chancellor fala aqui da minha amizade com o seu irmão Anthony Barcellos, falecido recentemente (precisamente da minha idade), mas chegarei lá só daqui a pouco. Hoje nem imagino do que falávamos ainda tão crianças, mas aparentemente já com “ideias”.
Primeiro do que tudo. Sais de uma pequena ilha açoriana da Ilha Terceira em 1964. Tens um primeiro ano completo do Liceu Nacional de Angra do Heroísmo. Tens 13 anos de idade. Logo, deixas a tua freguesia rural do Concelho da Praia da Vitória – em lágrimas e em insegurança absoluta e, sim, medo. Estás no momento de deixar o teu lugar de nascimento e de criança feliz, a única geografia que conheces. Num mês de junho, com todos os vizinhos e familiares na despedida, rumo a mares revoltos, pelo menos nesses dias, rumo ao cais de Angra. Vais ser assistido por homens que te metem num barco de boca aberta porque o navio Funchal ancorava ao longe, para depois subires uma longa escada de corda, sempre com a ajuda dos tripulantes a bordo. A viagem é para Ponta Delgada, onde me esperava décadas depois o meu destino tão trágico como feliz. Na manhã seguinte vias uma outra cidade, que me parecia grande e naturalmente estranha mas acolhedora. Correria em espanto e à espera dos exames de saúde e dos papéis do consulado americano. Mais uma viagem, agora para Santa Maria a bordo do navio Ponta Delgada, toda a beleza do nosso mar e de mais uma ilha desconhecida como paragem e seguimento. Lembro-me de meu pai nos oferecer uma volta à ilha que nos embarcava para a América. Não me lembro se o avião era da Pan American ou da TWA, mas isso não me incomoda. Sei que, uma vez mais, o medo de tudo isso era real, mas uma criança nunca se assusta assim tanto, a confiança em quem nos acompanha e protege nunca é questionada. O terceiro destino era Boston. Sei que escrevi um “diário” a bordo, mas nunca mais o encontrei na estranheza de toda a viagem e do fascínio de voar horas sem suspeitar nunca do que encontraria.
O primeiro choque cultural seria delicioso: escadas rolantes, para quem nunca tinha visto ou subido num elevador, e o cheiro das comidas e dos refrigerantes. América! Mal sabia eu que ainda haveria mais um avião e mais de cinco horas até Los Angeles, onde nos esperavam uns poucos da nossa família, agora de carro e mais de três horas na auto-estrada 99, que percorre quase todo o estado da Califórnia. Íamos para o Vale de São Joaquim, mais precisamente para a cidade das minhas saudades, Porterville, mesmo que a nossa nova residência fosse da ruralidade de fazendas e vacarias onde meu pai trabalharia um ano e pouco a ordenhar vacas, também para a família que lá havia chegado décadas antes. Ele na Terceira tinha rejeitado essa vida de terras e trabalhos associados. Entrou na base americana das Lajes muito novo, falava um inglês fluente depois de tantos anos como trabalhador no Clube de Oficiais Americanos. Estou aqui a falar de histórias muito antigas, mas que fazem parte da minha pessoa, da minha experiência de vida.
Nessa ruralidade californiana cheia de beleza e bondade conheci Anthony Barcellos, o primeiro e o mais significante amigo da minha vida. Apesar de um ano de liceu na Terceira, a minha idade não permitia ainda a escola secundária na América. Anthony cresceu na vacaria dos seus pais e avós a pouca distância de mim, e tínhamos de tomar uma daquelas camionetas amarelas, ícones igualmente da escolaridade numa terra tão vasta como o meu novo país. Foi a minha salvação, pois falava uma única palavra em inglês. Ok não conta para nada. Ele fez questão desde o início de ser meu amigo e “professor” ocasional da minha outra língua desconhecida. Na sala de aula sentava-se ao meu lado por ordens do professor, Mr. Snow, para que me traduzisse as instruções todas, as leituras e o resto que acontece entre crianças e adolescentes recém chegados. Não havia a chamada “educação bilingue”, o que nos exigia um esforço superior, atento. Passávamos por uma pequena cidade de nome Poplar, que desembocava na Pleasant View School, no meio de vastas terras que pareciam de ninguém e muito mais expansivas do que toda a minha ilha natal. Foi um recomeço radical, desafiador, feliz. Quando recordo esses tenros anos de escolaridade, Anthony regressa-me sempre com saudade e carinho.
Pouco depois meu pai, que era de falas contidas mas de ações determinantes resolveu deixar o trabalho com a família e ir para longe, para a grande Los Angeles e Imperial Valley, para uma cidade de nome Chino, onde trabalhou o resto da sua vida, com regressos periódicos à sua casa nas Fontinhas. Afinal a sua verdadeira “América” tinha sido na Terceira, e não na terra prometida no lado de lá do Atlântico. Outro destino meu estava marcado. Entrei em duas faculdades, e depois 14 anos como professor numa escola secundária. Perdi todo o contacto com Anthony Barcellos, até, décadas depois, ele publicar o seu supremo romance Land of Milk and Money, numa prosa devastadora na sua ironia e ajuste com o seu próprio passado. Retomámos a nossa relação à distância, e sinto de novo a falta que ele me faz. Pouco antes de falecer pediu à Mary que me dissesse o que lhe estava a acontecer. Foi-me doloroso – tanto a sua fatalidade como o seu nunca me ter esquecido num último adeus.
É claro que essa América não pode nem deve sair mais de mim. Quando hoje me perguntam o que penso daquele meu outro país, “dos americanos”, respondo sempre com outra pergunta: que “América”, quais dos “americanos”? Os da bondade e decência, ou os da raiva irracional e violências? Finalmente, os portugueses começam a entender que tanto o nosso país como todos os outros são constituídos por muita gente. A memória viva evita os julgamentos e os preconceitos de toda a espécie.
Anthony Barcellos permanece em mim como o exemplo de um grande ser humano, de um grande professor universitário, de um grande escritor, de um grande assessor da Assembleia Estadual da Califórnia. Foi e será sempre o amigo de referência para a minha cidadania e vida intelectual.
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A tradução da epígrafe que me foi enviada em inglês é da minha responsabilidade. Um grande obrigado a Deanna Overholt-Sturgeon por descobrir nos seus ficheiros a nossa foto em grupo.
BorderCrossings do Açoriano Oriental, de 1 novembro de 2024
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