O poeta parte sempre da ilha para o mundo, e do mundo regressa sempre à geografia das suas memórias e afetos.
Aníbal C. Pires
Haveria muito a dizer sobre a estrutura poética de Aníbal C. Pires. Ainda mais sobre as imagens, as metáforas, e sobretudo sobre as ideias de verso em verso, de poema em poema. Num espaço e num momento como este começo por não teorizar sobre literatura, sobretudo sobre a complexidade de uma voz singular entre nós, como a do poeta e escritor Aníbal C. Pires, ou do ato poético em geral. Os supostos cânones literários não passam de opiniões pessoais de cada um dos seus antologiadores e admiradores. Sim, das inimizades perante textos de um ou outro autor das nossas preferências. Nos Açores, provincianos que temos sido e somos, a alteridade de uns e as margens de outros não passam de construções literárias conforme a estética e noções de temáticas. Eis a palavra outra vez, de construções pessoais e até de grupos, de círculos fechados que se formam informalmente e língua destravada, do isolamento que eleva frequentemente os ignorantes em geral ou escritores de ocasião ou fim de semana. A grande escrita sofreu sempre da sua receção inicial e apressada. Degradante em muitos casos, hoje devidamente esquecidos, como merecem. Pela suposta ideologia dos seus muitos poetas, escritores escribas, pela tendência em ambientes fechados de certas castas reinventadas, de certos interesses mais comerciais do que literários e artísticos. Combinam a ignorância e arrogância com meia dúzia de noções pouco esclarecidas, formadas na escuridão do dizer que diz, sem qualquer leitura atenta ou minimamente interpretiva – dos que apenas dizem, nada mais, mais falando do seu imaginado saber do que uma entrada pelo texto dentro. Não alinho, nunca alinhei, nesses espaços de suposto saber e do adivinha. Nos Açores, e não só, isto é uma doença literária alegre, e a longo curso para ser ignorada.
A lisura do combate pela palavra, pela poesia e por outra escrita, está aqui com Aníbal C. Pires. Se assim não fosse não valeria a pena uma única palavra minha, ou de outros. Não valeria nem um pouco um crítico escrever nos nossos dias conturbados e confusos, de ameaça à nossa própria existência. Pessoalmente, estou farto de escritores na sua redoma egoísta e supostamente acima do que se passa à sua volta localmente e sobretudo no mundo. Escrever poderá ser um ato individual, necessariamente, de criar, como neste caso, de criar versos ou narrativas das suas circunstâncias ou mesmo das suas obsessões. A poesia e toda a escrita criativa tem, para mim, de combinar as duas coisas: vermo-nos mutuamente, perceber a outra maneira de estarmos, de ver o Outro, de tentar ver a coletividade a que pertencemos, o nosso passado e memórias, o que nos foram e são as nossas alegrias e felicidade, as nossas dores e ausências.
Na poesia e demais escrita de Aníbal C. Pires tudo isto está presente: O “eu” poético perante e pela comunhão com toda a comunidade e o mundo em geral. A sua mais profunda humanidade reaparece em poemas como Devaneio, depois seguida pela criminalidade em curso em boa parte do planeta. A forma como junta versos é livre, vem desde o norte-americano Walt Whitman, e depois em língua portuguesa do nosso primeiro modernismo literário de Fernando Pessoa e seus pares, eles que desafiaram toda a tradição nas nossas letras poéticas. A poesia sem ideias são meras imagens e metáforas, frequentemente significando nada, para lembrar aqui William Shakespeare e William Faulkner, este na sua revolta contra as linguagens hoje ditas académicas, as linguagens em jogos nada significantes. A poesia de Anibal C. Pires vem nessa linha das palavras que significam, dos belos versos e estrofes que combinam a beleza da ritma e a sonoridade da canção da nossa vivência, da bondade da vida lado a lado com o sofrimento da Humanidade e da sua persistência e resistência perante e qualquer Poder que espreita os indefesos, que tenta subjugar tanto os que lhes estão perto como longe, se ainda podemos falar num “longe” num mundo que testemunhamos cada dia e noite e nas nossas salas e através das vozes, todas elas que já nos são íntimas, na sua proximidade diária. Os versos de Aníbal C. Pires aparecem-nos em direto: cada palavra desperta o pensamento, por vezes a ambiguidade, mas sempre para que as pensemos no seu contexto, e sobretudo na nossa dúvida do que vemos e ouvimos todos os dias pelos vários diversos meios. Levam-nos ao que antes não nos apercebíamos, levam-nos ao outro lado da realidade e da lírica da arte. Neste Destroços À Deriva a falsidade linguística da poesia é expulsa, ou o dizer de folhas caídas e paisagens de inverno ou verão. A Natureza geográfica dos Açores, sim, está aqui. Só que situa o existencialismo dos seres humanos que a povoam, e depois a força da violência que nos toca a todos: aqui e em toda a parte, o choro de homens e mulheres debaixo de fogo mortífero, o grito do desespero sem sentido. A poesia de Aníbal C. Pires, uma vez mais, não condescende com questões ditas estratégicas ou militares. Denuncia-as em voz alta e clara. Depois, a beleza de estarmos juntos na luta por outra realidade que não seja esta. É um ato supremo de poesia. São os grandes poetas que nos dizem, nos cantam, o que poderia ser, mas não é.
Toda a obra de Aníbal C. Pires, em prosa e poesia, é a palavra significante que arquiva para sempre o termos sido e quem somos. Chamo-o com frequência um continental-ilhéu, como me chamo a mim próprio um ilhéu-continental. A sua poesia em Destroços À Deriva vem numa continuidade impressionante. Igual, sempre, a si próprio, como escritor e poeta, como ativista político. É deslumbrante lê-lo pela beleza da forma como pela lealdade aos seus ideais e da sua mundividência. Falar ou escrever dele é-me um desafio enorme: pela beleza das suas palavras, uma vez mais, pela absoluta autencidade das suas ideias sobre um mundo sempre em ebulição. Falar dele é um dos meus maiores privilégios, como crítico literário, como cidadão, como colega e amigo. Quando o poeta sai das suas preocupações cívicas e da História contemporânea, a morte de inocentes a acontecer todos os dias e a toda a hora, e entra pelo elogio do ser humano, como em poemas como “mães de gaza”, sei que estou com quem me identifico, com quem admiro sem quaisquer dúvidas.
Destroços à Deriva (poemas) vai evoluindo de verso em verso nessa clareza de visão, e sobretudo no silêncio das suas casas aqui e além-mar, o calcorrear de pedras açorianas não escorregadias, mas sim firmes na sua crença de que a vida, sua e nossa, continuará a conhecer o mundo que nos é triunfal tal como a necessidade da luta contra os que de tudo fariam – fazem – um inferno. Temos nestas páginas o verde e azul dos nossos dias, como a desgraça indizível noutras geografias perto e longe, tudo o que simboliza o pior da humanidade, oprimida, abusada, usada a favor de minorias de toda a espécie, essas terroristas num sentido tão real como diabólico na sua ganância e violência que vão além das armas – boa parte do nosso mundo é para estes um recurso de riqueza roubada, de atentado aos mais elementares direitos e dignidade de todos os outros. Cada leitor terá a sua interpretação, a memória desperta, a ideologia que o comove. Aníbal C. Pires não esconde nunca essa interpretação do que conhece em palavras que brilham pela sua claridade, pela sua generosidade, pela sua cumplicidade com todos os que lutam desde sempre contra todos que os nos esmagariam de todas as maneiras e proveito próprio. A sua poesia recusa um olhar banal e displicente ante as forças que nos querem recusar dias tranquilos e a igualdade serena de todos os outros, o que um movimento de libertação democrática norte-americano chama os “noventa e nove por cento”.
Destroços à Deriva (poemas), creio, é o mais comprometido livro de Aníbal C. Pires. Não procura ideologia, procura o mais profundo do nosso ser, do nosso estar. O presente é este falso mosaico, que já não admite outras cores senão as suas e únicas. O que devemos perceber nestas palavras é que o poeta se recusa a sucumbir à desesperança – a luta é parte da vida, e acima de tudo estar sempre atento às brechas de luz e felicidade. De resto, e é sempre muito nos contextos atuais, um rasgado elogio às mulheres sofredoras e à sua sacralidade e beleza frente aos demónios que caem do “céu”, ou à beleza de outras vidas numa cidade sem bombas e na aparência normalizada, sem a raiva mortífera de estranhos e criminosos.
Aníbal C. Pires, sobre toda a sua obra.
No BorderCrossings do Açoriano Oriental, 28 de junho de 2024.
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