sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Sobre a nova ficção de Álamo Oliveira


Não. O
Velho Testamento não tinha estes heróis da paixão, dos rituais da missa, das mortes dos moinhos de vento.

Os Belos Seios da Serpente

Álamo Oliveira 

É, ou deveria ser entendido, que Álamo Oliveira é um dos nossos supremos poetas, ficcionistas e dramaturgos da literatura de língua portuguesa. Natural e sempre residente na Ilha Terceira, desde Angra do Heroísmo à freguesia da sua naturalidade, Raminho, a sua carreira literária não é só distinta – deu voz, como diria o mexicano Carlos Fuentes, entre outros, a quem voz não tinha, nem nunca teve. Ser um grande escritor português nunca foi fácil, quanto a reconhecimento e a outros ritos literários premiados no chamado centro do nosso país. Só que ele conseguiu, mais do que muitos outros, que também o mereciam, essa notícia comentada da sua obra a nível nacional. Sei que ele não precisa destas minhas observações um tanto inquietas, mas não resisto ao combate pelo valor da arte literária (de outras artes não vem aqui ao acaso) em defesa ou apologia das suas obras. O presente romance deste nosso autor merece muito mais do que eu direi, é uma obra de ficção suprema fundamentada no Velho Testamento, e muito especificamente no Cântico do Cânticos, em que os nossos mais antigos davam à palavra a beleza dos homens e das mulheres, aos prazeres que Deus, ou os deuses, lhes tinham destinado e pedido. Se o “demónio” se tornaria a beleza indescritível de uma mulher desobediente no Paraíso, foi ela que obedeceu à ordem superior de ide e multiplicai-vos. Para sempre a nossa Humanidade ficou abençoada e condenada, dentro e fora do permitido e da transgressão. Não há como julgar ninguém. O novo romance de Álamo Oliveira torna-se muito mais do que isso: a continuidade da história humana em nada mudou – o estilo da modernidade e o modo como.

Os Belos Seios da Serpente vai às suas fontes primárias, para ao longo das suas páginas narrativas virar-se para a nossa atualidade – injustiças, medos, sonhos realizados ou desfeitos, ambições desmedidas pela fantasia de cada um ou uma, tantas vezes irreais noutras terras distantes e prometidas. A História dos Açores é o que é, como outros estudiosos já o disseram, de maneira diferente, o verdadeiro destino do nosso povo é a fuga e eventualmente o reencontro com a terra-mãe deixada. Logo depois da chegada às ilhas começava a partida para todo o lado, as ilhas de faias e nem sequer de início sem ratos ou lugar para ninguém. Só que muitos dos que ficaram a trabalhar as terras húmidas, o mar bravo, a sofrer os tremores de terra, e muito gravemente a fome das terras dos capitães dito donatários ou generais, os estranhos que mandavam em nós sem nunca nos conhecerem. Somos nós os verdadeiros heróis porque cuidaram desse lugar-pátrio até hoje. Os Açores são uma terra trágica, que alguns outros chamam hoje de “paraíso”. Deve ser pelo tempo ameno do clima, deve ser pela ausência de tiros de outros países, com algumas exceções. Os Belos Seios da Serpente tem tudo sobre alguns destes passos, e não precisa de mais nada. A nossa ruralidade cercada pelo Mar e pela História, os nossos novos e velhos a cultivar o pouco de terra que tinham. Todo o poder, a necessitar da memória do Velho Testamento: ditem novas regras porque aqui não Bezerro de Oiro nem Moisés a descer da montanha com ordens do seu Deus. Vulcões, sismos, uns mais destrutivos do que outros, medos e pedidos de misericórdia. Eis as ilhas e a pouca terra que nos coube. O mar foi sempre uma fonte de desgraça e salvação, e depois, uma vez mais, de fuga. A Serpente nunca nos deixou, e os seus “belos seios” foram só para quem pensava que estava no mar são e inocente– e a beber o veneno que o Reino, que sem sequer nos conhecia, oferecia aos desgraçados nas prisões e nos arredores de Alcântara, ou de onde lá atracavam as caravelas da miséria depois da bravura incontestável e dos negócios obscuros na Ásia.

Já notaram, suponho, que não nomeio uma única das poucas personagens neste romance. São da nossa ruralidade, quase todos eles com a sabedoria como com tudo que era rude no nosso dia a dia. Creio que não falho aqui quando digo que o narrador é um alter-ego do autor, esse que nos conhece palmo a palmo, cada casa da sua freguesia e os destinos domésticos ou da saída de muitos outros para além dos nossos horizontes marítimos, em que a América é a um tempo território da nossa regeneração, de riqueza – e de uma saudade ainda e sempre vivida. Álamo Oliveira já muito tem escrito sobre tudo isto, tanto na sua poesia como na sua prosa maior, da qual Já Não Gosto de Chocolates é exemplar, em que a tradição entra em conflito com a modernidade. Os Belos Seios da Serpente nunca esquece as nossas viagens para o outro lado Atlântico. Muito menos esquece que a natureza humana não conhece geografias ou culturas-outras. Neste romance ficamos entre a poesia pura e a prosa com o mesmo poder da metáfora, da sugestão ambígua, da palavra que nunca nos transmite certezas ou incertezas, leva o leitor a pensar e sobretudo a repensar-se. O narrador faz chamamentos a certa literatura ocidental, Dom Quixote a tentar a loucura da derruba dos moinhos imaginários do vento e das suas obsessões de guerreiro e amante. O recurso ao primeiro grande romance do ocidente, ou pelo menos da Península Ibérica, torna-se a nossa própria noção das batalhas improváveis de açorianos em busca das suas vitórias, mais imaginárias do que reais, a América a princesa (in)desejável e a fonte do perpétuo desafio a abanar por dentro do vento libertador, do amansar o corpo do eventual desejo de regresso às origens, geração após geração.

Eliseu dos Anjos [o narrador do romance] sabe que já passou a idade de endoidecer por causa das pernas de outra mulher. Chegou depressa à conclusão de que a viuvez também tem os seus encantos. Não ter obrigações de espécie alguma há compensa. Pensou em D. Quixote a ser perseguido por Dulcineia, a única mulher que o amava sem reservas e que era capaz de se despir para que ele descesse do cavalo e fizesse dela a sua égua. Ao lado, Sancho Pança ria com ruído infantil, pois sabia que D. Quixote preferia lutar contra um moinho do que amar o corpo de Dulcineia”.

Toda a grande literatura se torna, por assim dizer, uma espécie de autobiografia para cada um dos seus leitores? De certa maneira, sim, mas nunca na totalidade. A grandeza de um texto, como este de Os Belos Seios da Serpente, é precisamente o contrário – vermos o “outro” ou a “outra”. Tomemos conta que desde a antiguidade até hoje nada mudou. Somos iguais, como somos diferentes. Só que o mais íntimo do nosso ser permanece desde o início da nossa dita civilização. Eis aqui a grande literatura, eis a mentira como verdade, por mais inquietante que nos seja.

Finalmente, obrigado a Mário Duarte em Angra do Heroísmo por esta edição de Os Belos Seios da Serpente, um verdadeiro objeto de arte.

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Álamo Oliveira, Os Belos Seios da Serpente, Angra do Heroísmo, Vale Das Amoras, 1924.

BorderCrossings do Açoriano Oriental, 18 de outubro de 2024

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